Becas, borlas e jabôs
FOLHA DE SÃO PAULO - 24/01/10
Becas, borlas e jabôs não garantem a excelência que justifica nossa existência. É preciso talento e produção acadêmica competente
NO INTRIGANTE ensaio "A Invenção das Tradições", Eric Hobsbawm mostra como se inventam tradições a partir de raízes históricas fictícias. Irônico, analisa rituais, brasões, corporações e até o saiote escocês. Curiosamente, esquece a mais legitimada matriz contemporânea de símbolos e signos culturais: a universidade.
Tradições universitárias têm sido inventadas e cultivadas no correr de quase dez séculos. Em se tratando de vestes rituais, são quatro linhagens.
A universidade escolástica mantém-se viva nas tradições clericais das universidades italianas e ibéricas. As vestes solenes das universidades ibéricas são ainda hoje negras e soturnas, recriando trajes das cortes mediterrâneas do século 17. Acompanham adornos indicadores de segmentos, nunca da universidade como um todo. Assim são as samarras, capuzes estilizados que não mais recobrem cabeças, que ostentam cores definidas para cada uma das faculdades.
A universidade britânica surgiu para a formação teológica da Igreja Anglicana. Chapéus ornamentados, capuchos, túnicas e capas coloridas são elementos identificadores de cada casa de ensino, mas não de escolas ou faculdades. Uma procissão acadêmica numa universidade anglo-saxã revela profusão de cores e formas, pois os docentes terão feito seu doutorado em diferentes instituições.
A universidade humboldtiana nasceu sob forte influência protestante, com raízes luteranas ou metodistas, sub-rogada pelo disciplinarismo prussiano. Nos seus trajes rituais, variados por universidades, e não por faculdades, predomina a cor cinza ou marrom. Agregam-se signos remanescentes do barroco alemão, introduzindo elementos como o arminho em semicapas que evocam uniformes militares.
A tradição francesa pouco valoriza a instituição universitária. A reforma bonapartista da educação concedeu às "grandes écoles" hierarquia mais elevada que à universidade. Por isso, na França, vestes talares levam ao extremo o domínio simbólico das faculdades, sob a forma de faixas, sobrepelizes, pelerines e adornos sobre uma beca negra, lisa ou plissada. O "jabeau", peitilho com rendas e brocados, encimado por gravatinha borboleta branca, moda entre os gentis-homens da "belle époque", completa o vestuário de gala acadêmica.
No Brasil, quando faculdades e escolas politécnicas foram fundadas no século 19, a influência francesa predominou como horizonte intelectual e estético. As primeiras instituições promovidas ao regime de universidade foram formadas pela unificação de faculdades.
Hoje, nas instituições universitárias brasileiras, a beca negra e lisa, com um tipo padrão de casquete quadrado com borla e jabô de renda bordada, predomina como veste talar para graduações, simulacro da tradição francesa.
Diferenciando os docentes, faixas, sobrepelizes e capinhas, estilizadas dos capuzes doutorais lusitanos, seguem a gramática de cores do contexto francês. Para distinguir o reitor, universidades brasileiras adotam uma cópia exata da samarra das faculdades conimbricenses, reinventada na cor branca. Com o branco, síntese de todas as cores, talvez se pretenda simbolizar o poder maior da reitoria sobre as faculdades e suas cores.
Recentemente, no Salão de Atos de Coimbra, os reitores das universidades brasileiras reuniram-se para fundar o Grupo Coimbra Brasil. Quase todos em suas becas pretas e samarras brancas, muitos com sobrepeliz de arminho, jabô, faixa, capelo ou borla. Aí descobriram que os reitores da Universidade de Coimbra, fonte de nossa tradição universitária, usam somente um conjunto de calças e jaqueta, negras e justas, pois despojam-se dos signos de suas faculdades ao assumir o cargo maior da instituição.
Temos aqui uma questão de duplo sentido: político e antropológico. A universidade brasileira continuará a se reconstruir como instituição de conhecimento. Para tanto, reforçaremos vínculos com universidades de outras linhagens que conosco compartilham os valores da civilização.
Mas isso não nos obriga a imitar suas tradições nem a criar, a partir delas, simulacros. Os que escolhem fazê-lo precisam saber a que remontam e o significado de rituais e vestes, sobretudo por seu impacto no imaginário social.
Becas, borlas e jabôs são apenas roupas que, em eventos solenes, representam pompa e tradição. Sozinhos, não garantem a excelência que justifica, à sociedade, nossa existência. Isso se conquista com talento, trabalho cotidiano e produção acadêmica competente.
NAOMAR DE ALMEIDA FILHO, 57, doutor em epidemiologia, pesquisador 1-A do CNPq, é reitor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor, com Boaventura de Sousa Santos, de "A Universidade do Século XXI: Para uma Universidade Nova" (Almedina, 2009).
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