Qual seu destino?
- Maceió, respondi.
- Eu vou descer no Recife, depois de você. Temos uma longa viagem pela frente. Vamos aproveitá-la bem, conversando. Concordas?
A senhora simpática, de sorriso largo e generoso, sentou ao meu lado na primeira fila da aeronave e foi logo se apresentando: "Meu nome é Zilda Arns e o seu?"
Não consigo precisar quando, mas era final dos anos 90. Embarcamos no Rio de Janeiro e o avião fazia escalas em Salvador e Aracaju antes de Maceió. Portanto, a conversa deve ter durado entre quatro e cinco horas. Desci do avião com a sensação de ter aprendido muito com aquela mulher que conhecia de nome, pela Pastoral da Criança, e imaginava sua ação restrita ao trabalho social. Pois o que mais assimilei e aprendi daquela conversa foi o seu jeito sábio e, ao mesmo tempo, simples de fazer política.
Limitei-me a perguntar e ouvir. E a resposta que mais me fez pensar foi dada à pergunta sobre sua ideologia:
- Não sei - disse simplesmente. E explicou com um exemplo:
- Quando fui diretora da Secretaria da Saúde do governo do Paraná, nos anos 70, meus amigos de esquerda criticavam e me acusavam de servir a um governo da ditadura. Não me importava nem com a esquerda, nem com o governador, nem com os militares ditadores. Importante era fazer o meu trabalho, levar saúde pública para crianças pobres. E consegui, porque não me faltaram dinheiro nem liberdade para fazer do meu jeito.
Na verdade, a ideologia de d. Zilda Arns foi o amor pelo ser humano, e humanismo existe entre homens de esquerda e de direita. Não é monopólio de nenhuma ideologia. No livro Direita e Esquerda (Editora Unesp, 1995) o pensador político italiano Norberto Bobbio lembra ser comum identificar a esquerda com o ideal de igualdade e a direita com o ideal de liberdade, mas observa: "Há doutrinas e movimentos mais igualitários e outros mais libertários, mas tenho dificuldade em admitir ser isto que distingue a direita da esquerda."
A sabedoria política de d. Zilda foi agir com pragmatismo, fazendo prevalecer princípios humanitários sobre determinismos ideológicos. Mas há quem se movimente na política no sentido contrário ao de Zilda Arns, por regulamentos ideológicos que fazem aflorar o ódio, o preconceito e dividem grupos sociais.
Na América Latina o representante mais autêntico desse fenômeno é o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Há dez anos no poder, ele usou a riqueza do petróleo para comprar apoio político ao seu projeto contra os EUA, distribuindo dinheiro aos governos da Bolívia, Equador, Argentina e Cuba. Dentro do país, em vez de aplicar a riqueza do petróleo em educação, saúde, investimentos em infraestrutura e distribuir renda com a geração de empregos, escolheu comprar apoio popular distribuindo dinheiro aos pobres.
Aí chegou a hora da verdade. A crise global fez despencar o preço do petróleo e abriu um enorme rombo nas contas do país. Mesmo com a economia em recessão e o PIB em queda de 2,3%, hoje a Venezuela vive racionamento de energia elétrica, cortes no fornecimento de água, escassez de alimentos e outros produtos essenciais, a inflação chegou a 27% em 2009 e, com a recente maxidesvalorização cambial, pode atingir 35% em 2010, devorando o poder aquisitivo da população.
Mas Hugo Chávez segue com seu populismo ideológico. À oposição ao seu projeto ele responde fechando emissoras de rádio e de TV, reprimindo a ação da imprensa, impondo sua vontade política e expropriando empresas privadas, como acaba de fazer com um supermercado francês. Com isso só consegue afugentar o investimento privado, não gera progresso econômico nem empregos, não distribui renda. Verdades absolutas ditadas por intolerâncias ideológicas atrapalham o progresso e atrasam a vida de um país, e pior quando são impostas, ignorando o bom senso, o bem comum. Padece a população, como acontece agora na Venezuela.
Também por aqui tivemos um exemplo, que tomou rumo diferente. Por quase duas décadas Lula e o PT atuaram no plano político-ideológico, xingando o FMI, o Banco Mundial e o governo dos EUA, condenando o capitalismo, empresários, banqueiros, fazendeiros, pregando o calote na dívida e votando contra todos os projetos de seu antecessor no Congresso, fosse o que fosse. Quando a chance de chegar ao poder ficou próxima, parte do PT deixou o partido, mas Lula e a maioria trataram de mudar radicalmente - discurso e ação. Renegaram o passado e trataram de se apropriar da política econômica de FHC que tanto condenaram.
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