Com Piñera, Chile elege a alternância
O ESTADO DE SÃO PAULO - 24/01/10
Com Sebastián Piñera na presidência, o desenvolvimento econômico e a democracia do Chile receberão um forte impulso e consolidarão o progresso integral da sociedade chilena - que, desde a queda da ditadura de Augusto Pinochet, há vinte anos, é o mais profundo que a América Latina conheceu.
Curiosamente, sua vitória não é um repúdio a Michelle Bachelet. A presidente do Chile sai do poder com 81% de popularidade, a mais alta já alcançada por um mandatário chileno ao deixar o governo.
Interessante sutileza a do eleitorado do Chile: ele premia com seu afeto a primeira mulher que chegou ao Palácio La Moneda e reconhece sua honestidade, seu empenho nas tarefas de governo, sobretudo seus esforços para promover a mulher e superar os preconceitos que freavam sua participação na vida econômica e política.
Mas, ao mesmo tempo, também decide que chegou a hora da alternância, abrindo à oposição de direita o acesso ao poder, depois de vinte anos de governo dos partidos de esquerda e centro-esquerda da Concertação. Fazia 52 anos que um candidato conservador não ganhava as eleições no Chile: o último foi Jorge Alessandri em 1958.
O balanço desses vinte anos da Concertação no poder é excelente. O Chile desmontou os aparelhos repressivos e as leis de exceção da ditadura, iniciando um processo de reparação e desagravo das vítimas. Simultaneamente, preservou as grandes linhas de uma política econômica que permitiu que a economia do país decolasse de maneira notável, reduzindo a pobreza de 42% a 13% (um avanço social que virou modelo em toda a América Latina), fez crescer a classe média, atraiu investimentos do mundo inteiro e dotou o Chile de uma estabilidade e solidez institucionais comparáveis às de democracias ocidentais de ponta.
A esquerda que governou o país nos últimos vinte anos não é a mesma que subiu ao poder com a Unidade Popular e Salvador Allende. Aquela acreditava na Revolução e no socialismo, não na democracia liberal, e seu modelo era a Cuba de Fidel Castro. Sua política de estatizações e de descalabro fiscal provocou uma inflação estratosférica, o caos e o empobrecimento generalizado, o que tornou possível o golpe militar e a sanguinária ditadura de Pinochet.
A Concertação aprendeu a lição e governou com espírito democrático, ressuscitando a velha tradição legalista chilena, reconstruindo o Estado de Direito e as liberdades públicas, mantendo a economia de mercado e o impulso aos investimentos bem como a disciplina fiscal. A abertura do Chile ao mundo foi também acelerada.
Mas vinte anos no poder são muitos. A Concertação perdeu o brio, começava a ficar embotada e, nos últimos anos, foram descobertos até mesmo alguns casos de corrupção, praticamente ausente da vida política chilena. Com discernimento, uma maioria eleitoral - apertada, sem dúvida: apenas 3,5 pontos porcentuais de vantagem para Piñera - decidiu que havia chegado a hora da alternância, princípio democrático por excelência.
A direita que chega ao La Moneda com Piñera também não é a mesma direita das cavernas, autoritária e conservadora representada pelo governo de Pinochet. Quando este deu o golpe, em 1973, Piñera estava na Universidade Harvard, nos EUA. Quando regressou ao Chile, trabalhou na CEPAL - na época de linha esquerdista e promotora da catastrófica política de "substituição de importações e desenvolvimento para dentro" - e, em todas as suas intervenções cívicas, se opôs à ditadura militar.
Foi contrário à Constituição imposta pelo regime militar e durante o plebiscito de 1988 participou ativamente com a oposição democrata-cristã na campanha pelo "Não", que dirigiu e ajudou a financiar com recursos de seu próprio bolso.
LIBERAL CONVICTO
Conheço Piñera há uns trinta anos, e, além de ter uma energia que chega a cansar os que o cercam, sei que é um democrata e um liberal convicto, inimigo de toda forma de autoritarismo e empenhado em aprofundar a liberdade em todos os campos da vida social.
Além disso, é uma pessoa tolerante e aberta, capaz de coexistir com ideias que divergem das suas quando contam com o apoio popular. Por isso, não foi fácil para ele obter o respaldo nas primárias para a sua candidatura presidencial dos setores mais conservadores da coalizão de centro-direita. Alguns militantes da União Democrata Independente (UDI) engoliram com dificuldade, por exemplo, o apoio de Piñera (que é católico praticante) a medidas como a pílula do dia seguinte e as uniões legais entre gays.
As grandes reformas que Piñera prometeu não comprometem os princípios básicos da democracia política e econômica de mercado, em torno dos quais, felizmente para o Chile, existe um firme consenso entre a esquerda e a direita chilena.
Mas introduzirão neste modelo grande renovação e modernização em temas como a educação, a proteção ao meio ambiente e a revolução tecnológica nos campos da comunicação e da globalização. Isso vai equipar o Chile para a concorrer nos mercados internacionais nos quais o país já se inseriu, mais e melhor, do que qualquer outro país latino-americano.
Piñera propôs corajosas reformas na Corporação Nacional do Cobre (Codelco), como a abertura de parte da exploração a empresas privadas e, o que é mais importante, o fim da exigência de que 10% das exportações desse produto se destinem às Forças Armadas.
PROJETO DE GOVERNO
Durante minha breve estada no Chile pude conhecer alguns dos 37 "Grupos de Tantauco" - na grande maioria jovens profissionais e técnicos saídos das melhores universidades chilenas e estrangeiras que, sob a direção do economista Cristián Larroulet, diretor do Centro de Estudos Liberdade e Desenvolvimento, estão preparando, há dois anos, o projeto de governo da Coalizão para a Mudança, de Piñera, e treinando equipes para implementá-lo.
Fiquei impressionado com o rigor das ideias, os projetos e o entusiasmo com que os jovens, mulheres e homens que trabalham neste plano se comprometeram, se necessário, a abandonar seus trabalhos bem remunerados no setor privado para se dedicarem no governo de Piñera a tornar o Chile um país do século 21.
No contexto latino-americano, a vitória de Piñera é um sério revés para o comandante Hugo Chávez, da Venezuela, e o grupinho de países que, sob sua liderança - Cuba, Nicarágua, Bolívia e Equador - pretendem impor na América Latina o modelo autoritário e populista ("O socialismo do século 21") que, nestes dias de colapso do fornecimento de água, energia e alimentos em terras venezuelanas, já mostra seus frutos.
O governo de Piñera - ele próprio o afirmou com clareza em sua primeira entrevista à imprensa estrangeira após a eleição- reforçará e dará novo alento a países que, como México, Costa Rica, Panamá, Colômbia, Peru, Uruguai e Brasil, defendem a cultura democrática e resistem à ofensiva autoritária que, de Caracas, se propõe a fazer com que o continente retroceda para o coletivismo, o estatismo e a demagogia populista.
É quase um milagre que em um país latino-americano tenha chegado à presidência da república, em eleições livres, um empresário como Piñera, cujo patrimônio é calculado em mais de US$ 1 bilhão.
Nada é mais típico do subdesenvolvimento quanto a demonização do empresário, considerando-o um explorador, corruptor e inimigo dos pobres.
Um indício do avanço ocorrido no Chile em relação ao resto do continente é que os eleitores chilenos parecem ter compreendido que um empresário, quando é bem-sucedido em um regime de legalidade e livre concorrência - e não graças a negociatas ou a privilégios monopolistas - é um gerador de empregos e de riqueza, e seus sucessos beneficiam a sociedade como um todo.
No dia em que nos despedimos em Santiago, três dias antes da eleição, perguntei a Piñera qual seria sua melhor contribuição no governo, se ganhasse as eleições: "Dar um impulso decisivo ao nosso programa de oito anos, para crescer a uma média de 6% ao ano, algo perfeitamente possível. Se conseguirmos, a renda per capita, que agora é de US$ 14 mil, poderá chegar a US$ 24 mil. Teremos alcançado Portugal."
O Chile terá deixado então o subdesenvolvimento e será o primeiro país da América Latina a incorporar-se ao Primeiro Mundo.
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