Confusão legal
FOLHA DE SÃO PAULO - 20/11/09
Desfecho do caso Cesare Battisti cria anomalia institucional e projeta insegurança jurídica para as extradições futuras
A DESASTRADA decisão do ministro da Justiça, Tarso Genro, de conceder refúgio ao terrorista italiano Cesare Battisti -condenado em seu país por quatro homicídios- acabou por desencadear uma reviravolta no modo como o Brasil trata pedidos para extraditar estrangeiros. O resultado é uma anomalia institucional que projeta confusão e insegurança jurídica para o futuro.
Ao sustentar o refúgio, o ministro da Justiça imputou à Itália "fundados temores de perseguição política" contra Battisti. Para Genro, uma democracia estável desde o final dos anos 1940, com Judiciário independente, seria incapaz de garantir o cumprimento adequado de sentenças transitadas em julgado.
Expedido o refúgio, a lei específica, de 1997, manda cessar o trâmite dos pedidos de extradição. Mas outra norma, o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, atribui exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal decidir se um crime imputado a um extraditando é político -hipótese em que o Brasil não permite a extradição.
Ora, Tarso Genro concedeu o refúgio por avaliar que os crimes pelos quais o italiano foi condenado eram políticos: havia, portanto, um conflito de competências. O Supremo, que já havia ensaiado dirimir essa dúvida num caso precedente, decidiu fazê-lo por ocasião do juízo de Battisti.
Por margem de um voto, o plenário desqualificou os argumentos de Tarso Genro, anulou o refúgio, refutou a tese dos homicídios políticos e julgou procedente a extradição. A maior novidade viria a seguir: o ministro Ayres Britto mudou de lado e juntou-se aos colegas antes derrotados para estabelecer que é do presidente da República a última palavra, nesta e em todas as outras extradições daqui por diante.
Não se trata, é importante notar, de autorizar o chefe do Executivo a recusar ou adiar a entrega de Battisti à Itália nos casos já previstos nas leis e no tratado de extradição com o Brasil -já é do presidente, por exemplo, a faculdade de aguardar o término do processo ao qual o estrangeiro responde aqui, por falsificação de documentos. O Supremo diz, simplesmente, que Lula não está obrigado a cumprir a extradição. Pode recusar-se a entregar o extraditando num ato de pura, e ilimitada, discricionariedade.
Num passe de mágica, transfere-se a instância julgadora da extradição -papel que a Constituição reserva ao Supremo- para a Presidência da República. A corte máxima de repente se torna um órgão meramente consultivo nessa matéria, contrariando sua tradição centenária de decidir as questões, produzindo efeitos necessários de suas manifestações.
O inusitado é tamanho que nem sequer o Planalto -sequioso por consumar a ação entre amigos iniciada por Genro- sabe reagir. Como manter um estrangeiro cujo status de refugiado foi cassado na Justiça? Como justificar politicamente um ato que contraria o Supremo? Como impedir a entrega de Battisti sem desmoralizar o tratado de extradição entre Brasil e Itália?
A obsessão do governo de atender a um pequeno mas ruidoso lobby de militantes de esquerda já nos custou demais. Os amigos de Cesare Battisti têm todo o direito de pleitear o relaxamento de sua prisão. Mas que o façam no lugar certo -na Itália que o julgou e condenou. É para lá que Lula deveria transferir o terrorista, respeitando a vontade da maioria do Supremo.
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