Descartes, em frase famosa, escreveu que o bom senso é a faculdade melhor distribuída no mundo. Na época, bom senso se referia à razão. Traduzindo para hoje: a inteligência das pessoas se distribui entre elas seguindo uma curva normal. Pode ser. Mas o common sense dos americanos é outra coisa: a sabedoria. Seja no sentido francês, seja no inglês, parece que o mundo de hoje perdeu o senso. De hoje?
Muito comumente os que tomam decisões pouco se preocupam com os dias futuros. O tempo passa, e quem paga a conta são as gerações futuras. A falta de senso vem de longe. Basta olhar para o que vimos ainda esta semana. Seja o Isis, seja quem for o responsável pelos ataques terroristas na Turquia, eles são respostas irracionais a atos também irracionais do passado.
Não foi o colonialismo inglês que partiu o Oriente Médio em Estados-nação que controlam etnias, religiões e culturas distintas? E, na África, os ingleses não contaram com a ativa cooperação dos franceses e demais potências ocidentais para criar países artificiais? Mais recentemente, não foram os americanos no Iraque, os europeus na Líbia, e todos juntos na Sí- ria, que fizeram intervenções para restabelecer o “bom governo” e deixaram os países divididos e ingovernáveis?
E não foram outras pessoas que pagaram com a vida, décadas depois, o ardor missionário dos terroristas de vários tipos? Mais recentemente, a maioria dos britânicos votou por separar o Reino Unido da Comunidade Europeia. Só depois se assustaram. Amanhã, acaso os americanos não podem pregar uma peça neles próprios (e em todo o mundo) e eleger o Trump?
Espero que não. Mas, em qualquer dos casos (e ainda que os ingleses tenham lá seus argumentos contra a “burocracia de Bruxelas”), as consequências, como a sabedoria de Eça fazia o conselheiro Acácio dizer, vêm sempre depois. Escrevo isso não para justificar, mas para tentar explicar algo do que ocorre entre nós.
Assim como no passado outras visões do mundo puderam levar alguns povos, momentaneamente, à insensatez, e esta cobrou seu preço no transcorrer do tempo, no mundo atual há um sentimento antiordem estabelecida, que poderá cobrar preço alto no futuro. Está na moda, por motivos compreensíveis, colocar no pelourinho a política e os políticos.
Não é só aqui e vem de longe. O mesmo movimento que levou à ampliação da interação social, saltando grupos, Estados e nações, baseado no acesso à informação e às novas tecnologias, pôs em xeque as instituições tradicionais, tanto das ditaduras como das democracias representativas. Foi assim na “primavera árabe”, do mesmo modo que nos movimentos dos “indignados” da Espanha, agora no anti-Bruxelas da Grã-Bretanha.
E não é de outra índole o tipo estranho de protesto que permitiu Trump derrotar os “donos” do Partido Republicano, ou o susto que o senador Bernie pregou em Hillary. Por todos os lados há um mal-estar, um inconformismo: todos vêm e sabem que a vida pode ser melhor, sentem que o progresso material cria oportunidades, mas delas se apoderam alguns, não todos.
Deriva daí, como do desemprego, que é outra faceta da desigualdade básica de apropriação de oportunidades, uma insatisfação generalizada que se volta contra “los de arriba”. O horizonte parece toldado, mas não ao ponto de impedir que “los de abajo” vislumbrem bom tempo para alguns, o que irrita. Irrita mais ainda quando há um sentimento de impotência, porque os que sabem e possuem têm vantagens desproporcionais diante da maioria que vê o bonde da História passar.
Essa constatação só aumenta a angústia e a responsabilidade dos que dela têm noção. Tivemos no Brasil, à nossa moda, algo disso. Há responsáveis, mas não vem ao caso acusar. Provavelmente alguns deles, se forem intelectualmente honestos, estão se perguntando: por que não vi antes que endividar irresponsavelmente o país, mesmo que a pretexto de aumentar momentaneamente o bem-estar do povo e criar ilusões de crescimento econômico, é algo ruinoso, que as gerações futuras pagarão?
Exemplo simples: quando foi derrotada a emenda na Previdência Social de meu governo, que definia uma idade mínima para as aposentadorias, não faltou quem gritasse vitória. Alguns dos mesmos que década depois se deram conta de que não se tratava de “neoliberalismo”, mas de projetar no futuro próximo as consequências financeiras de tendências demográficas inelutáveis. Diante do estrago, não adianta chorar: é darmo-nos as mãos e ver se encontramos caminhos.
Digo há tempos que o sistema político atual (eleitoral e partidário) está “bichado”. Sou defensor das ações da Lava-Jato e sei que sem elas seria mais difícil melhorar as coisas. Mas não nos iludamos: sem alguma forma de instituição política e sem políticos que a manejem, não será suficiente botar corruptos na cadeia para purgar erros de condução da economia e da política.
Que se ponha na cadeia quem for responsável, mas que não se confunda tudo: nem todos os políticos basearam sua trajetória na transgressão, e nem todos que financiaram a política, bem como os que receberam ajuda financeira, foram doadores ou receptores de “propinas”. Se não se distinguir o que foi doação eleitoral dentro da lei do que foi “caixa dois”, e esta do que foi arranjo criminoso entre governo, partidos, funcionários e empresários, faremos o jogo de que “todos são iguais”. Se fossem, que saída haveria?
Está na hora de juntar as forças descomprometidas com o crime, e elas existem nos vários setores do espectro político, para que o bom senso volte a imperar e para que possamos recriar as instituições, entendendo que no mundo contemporâneo a transparência não é uma virtude, mas um imperativo, e, por outro lado, que se não houver meios institucionais para decidir e legitimar o que queremos não sairemos da desilusão e da perplexidade.
Não é hora só para acusações, é hora também para a busca de convergências.
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