domingo, julho 03, 2016

A cautela do Banco Central - JOSÉ CELSO PASTORE

O ESTADÃO - 03/07


Em sua primeira entrevista à imprensa, o novo presidente do Banco Central deixou claro dois pontos. Primeiro, que seu único objetivo é trazer a inflação para a meta de 4,5% ao ano, mas não em 2018 (ou ainda mais adiante), como muitos chegaram a pensar, e sim ao fim de 2017. Com isso, frustrou quem, olhando apenas para o tamanho da recessão, mas sem dar o devido peso aos efeitos diretos e indiretos da enorme expansão fiscal sobre a inflação, esperava o início mais precoce de cortes agressivo da taxa de juros. Segundo, que o custo de trazer a inflação para a meta depende crucialmente de outras decisões de política econômica e, em particular, da política fiscal.

Ao reafirmar que o Banco Central tem apenas um mandato – a meta de inflação –, Ilan Goldfajn indica que pretende explorar em toda a sua extensão a força da queda das expectativas, reduzindo a inércia inflacionária que nos últimos anos elevou-se pelo afrouxamento do compromisso do Banco Central com a meta de inflação, e é responsável em larga medida pelas elevadas taxas atuais de inflação. Em adição, suas repetidas referências à política fiscal evidenciam o reconhecimento de que a política monetária não é feita no vácuo, e que quanto mais expansionista for a política fiscal mais elevada será a taxa real de juros para trazer a inflação para a meta.

Se o governo Temer tiver sucesso em executar todas as etapas do ajuste fiscal que está iniciando, gradualmente sairemos de um período de aproximadamente dois anos no qual a política fiscal foi extremamente expansionista, com uma combinação de forte aceleração do crescimento dos gastos primários ao lado da estagnação das receitas. Essa foi uma das causas, embora não a única, das inflações muito acima da meta nos últimos anos. Mas ainda que tenha sucesso nas demais fases do ajuste fiscal, esse será muito lento, correndo o risco de ser atenuado ou mesmo interrompido diante de dificuldades políticas na aprovação das reformas necessárias.

Dúvidas. Por quanto tempo ainda teremos déficits primários mesmo diante da aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que corrige os gastos primários em um ano pela inflação do ano anterior? Por quanto tempo ainda assistiremos ao crescimento da relação dívida/PIB? Se o governo cumprir a promessa de não elevar a carga tributária, a receita permanecerá constante em relação ao PIB (em torno de 18%), e a despesa cairá tanto mais em relação ao PIB quanto maior for a taxa de crescimento econômico. Os cálculos de Marcelo Gazzano e Caio Carbone mostram que se o PIB passar a crescer à taxa de 3,5% ao ano ainda teremos déficits primários até 2021 – bem depois de encerrado o governo Temer -, e no caso mais provável de um crescimento de 2,5% ao ano teremos déficits primários até 2023.

No gráfico acima se verifica que em qualquer dos dois casos a relação dívida/PIB ainda crescerá durante alguns anos, chegando em 2021 ao pico de 82% caso o crescimento do PIB seja de 3,5% ao ano (o cenário 1), e atingindo mais de 90% em 2025, no caso mais provável de um crescimento do PIB de 2,5% ao ano (o cenário 2).

Em ambos os casos, o grau de expansão fiscal estará em declínio, mas ainda muito distante de levar a uma política fiscal contracionista, que abriria espaço para uma queda mais intensa da taxa de juros. Para que o crescimento da relação dívida/PIB não aumente o risco de solvência, elevando os prêmios de risco e depreciando o real, o governo Temer terá de emitir sinais muito claros de que pretende se manter plenamente comprometido com um novo regime de política fiscal. Se esse ajuste falhar, voltaremos à mesma situação de descontrole vivida durante o governo Dilma Rousseff, no qual as cotações do CDS brasileiro de 10 anos chegaram a mais 500 pontos, com forte depreciação cambial, empurrando a inflação para cima, e reduzindo a eficácia da política monetária.

A boa notícia é que mesmo diante de um ajuste fiscal lento e ainda incompleto a inflação deverá cair acentuadamente em 2017. Primeiro, porque os efeitos inflacionários da correção de preços administrados rapidamente estão se esgotando. Segundo, porque embora perdendo força a atual recessão ainda é claramente desinflacionária. Terceiro, porque se o Banco Central tiver sucesso na reafirmação de seu compromisso com a meta, cai o efeito da inércia e cresce o efeito da inflação esperada, acentuando a queda da inflação corrente sem deprimir ainda mais a atividade econômica.

Câmbio. E o que esperar da contribuição da taxa cambial? A afirmação de que as intervenções no mercado de câmbio seriam “muito parcimoniosas” chegou a ser entendida como o final das intervenções, com alguns temendo o custo de uma valorização mais intensa, mas essa impressão começou a ser desfeita com o anúncio do retorno aos leilões de swaps reversos. O câmbio deverá flutuar, mas grandes apreciações provavelmente serão evitadas.

O conjunto dessas forças leva à queda da taxa de juros mesmo diante do compromisso de atingir a meta de 4,5% em 2017. Porém, uma queda ainda mais intensa depende dos próximos passos da política fiscal. A PEC que define a correção nominal de gastos é apenas um primeiro movimento, que tem de ser seguido no mínimo pela reforma da Previdência, e para aprová-la o governo terá de enfrentar batalhas difíceis no Congresso.

Gazzano e Carbone simularam o que ocorre com os demais gastos, admitindo que não ocorra nenhuma alteração nos gastos da Previdência e caso as correções dos gastos de Saúde e de Educação sigam a regra proposta na PEC. Com hipóteses realistas sobre o comportamento de diversas despesas obrigatórias sob as quais o governo não tem controle (como precatórios e seguro-desemprego), eles estimam o que precisa ocorrer com cinco grupos de despesas: subsídios e subvenções, Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, Programa de Aceleração do Crescimento e custeio e investimento dos demais ministérios.

A conclusão é que até o fim do atual governo (em 2018) tais gastos precisariam ficar aproximadamente constantes em termos nominais. Ou seja, se não for seguida de outras alterações legais, a permanência da regra imposta pela PEC –que estabelece a correção nominal de gastos – dificilmente sobreviverá, desafiando o ajuste fiscal, e acentuando as incertezas sobre a execução da política monetária. Por todas essas razões, as perspectivas quanto aos próximos lances da política monetária ainda não estão claros.

Depois do envolvimento do governo Dilma com a aventura da “nova matriz”, estamos retornando ao “tripé da política macroeconômica”, caracterizado pelo regime de metas de inflação, por um razoável grau de flutuação cambial e pelas metas de superávit primário. Infelizmente, a aventura da “nova matriz” deixou um legado de custos extremamente elevado, que tomará alguns anos para ser absorvido e devidamente superado, mas para que isso ocorra, absorvendo-se os benefícios do regime de metas de inflação, é necessário que o governo entregue, antes de tudo, suas promessas relativas à mudança do regime fiscal.


EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE NO PRIMEIRO DOMINGO DO MÊS

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