O Estado de S. Paulo - 11/06
A semana começou em clima de pós-Quaresma, com a presidente da República afirmando que não é justo tratar o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, como Judas. Foi numa entrevista exclusiva a Tânia Monteiro – publicada na edição de segunda-feira do Estado – que Dilma Rousseff lançou a público sua surpreendente analogia: “Eu acho injustas (as críticas a Levy) porque não é responsabilidade exclusiva dele. Não se pode fazer isso, criar um Judas. Isso é mais fácil. É bem típico e uma forma errada de resolver o problema”.
Evidentemente, a declaração foi politicamente incorreta. Parece que a intenção de Dilma era recriminar as críticas dirigidas ao ministro da Fazenda. Entretanto, ao rememorar o antigo ritual da “malhação do Judas”, ela chamou para dentro da crise brasileira um mal-estar que andava esquecido. Esse mal-estar atravessou séculos e séculos gerando dor, obscurantismo e preconceito por toda parte. À língua portuguesa legou o infamante verbo “judiar”.
Uma das características marcantes dos improvisos de Dilma Rousseff tem sido a instabilidade semântica. Em suas frases espontâneas, os sentidos das palavras oscilam de um lado para outro, sem se fixar num fio lógico mais definido. São frases ambivalentes além da conta. Tomemos por base o núcleo da declaração em pauta: “Não se pode fazer isso, criar um Judas”. Podemos depreender daí, isso se tivermos boa vontade, que a presidente desaprova qualquer Judas, uma vez que “criar um Judas” seria “bem típico e uma forma errada de resolver o problema”. Sem dúvida, seria melhor se o sentido fosse esse.
Acontece que podemos entender também, das mesmíssimas palavras, que não há restrições da presidente “no que se refere” (expressão que lhe é cara) ao ritual do Judas. O único problema estaria no erro de pessoa. Malhar o Judas tudo bem, mas Levy é o Judas errado. No que se refere a isso, ficou chato.
Tão chato que o mais que prudente vice-presidente procurou atenuar o desacerto linguístico da titular. Lançando mão da descontração de que é capaz, Michel Temer declarou à imprensa que o ministro é “muito menos Judas e muito mais Cristo”, formulação que, por sua vez, abriu outro espinheiro: se existe alguém que vem sendo ruidosamente crucificado pelo partido da própria presidente da República, esse alguém é Joaquim Levy. Rapidamente, o que era chato ficou pior.
Como se se desse conta, no instante mesmo da fala, de que um fio de apostasia não premeditada se insinuava na crista de seu discurso, Temer sapecou uma saída protocolarmente brincalhona: “Ele tem de ser tratado como Cristo, que sofreu muito, foi crucificado, mas teve uma vitória extraordinária na medida em que deixou um exemplo magnífico, um exemplo extraordinário para todo mundo”.
Amém. No corolário de tão elevada suma teológica no que se refere ao padecimento e à ressurreição de Jesus Cristo, o dogma central do catolicismo vira uma “vitória extraordinária”. Temos, então, que o ministro da Fazenda, que segundo Temer não é Judas, não é sequer Jesus Cristo, uma vez que Cristo, pelo menos até o calvário, sofreu e sangrou como um homem de carne e osso, ao passo que Joaquim Levy já ultrapassou essa barreira: não há dúvidas de que ele se vai consagrar com uma “vitória” tão “extraordinária” quanto a do nazareno. Conclusão: de acordo com Michel Temer, Joaquim é nada menos do que Deus, a tal ponto de nem precisar morrer para ressuscitar de sua crucificação injusta e errada.
Vivemos dias de involuntárias piadas oficiais. As falas do poder, sempre modorrentas, andam se revelando engraçadas. São falas falhas, que saem do script e descambam para o absurdo, vocalizando tudo aquilo que seus enunciadores gostariam de ocultar. Por exemplo: que Dilma quer encontrar o Judas certo e, aí, bater nele até cansar. Ou que Temer espera de Levy nada menos que um milagre – quem sabe, a ressurreição do PIB. O poder que aí está (ou não está, posto que por vezes se ausenta em lapsos e ou apagões) lida mal com as necessárias ambiguidades dos signos de que lança mão. Lida mal com os seus modos de se comunicar e com o risco de transmitir a mensagem oposta àquela que tenta transmitir.
No que se refere a isso, são especialmente sintomáticas as fotografias sucessivas, reiteradas e repetidas da presidente dando pedaladas em cima de uma bike. A imagem fala – e alguém deveria saber disso no Palácio do Planalto. A imagem fala com palavras e como as palavras – e alguém deveria saber disso no Palácio do Planalto. A imagem que se repete fala repetidamente com palavras – e alguém deveria saber disso no Palácio do Planalto.
Olhemos as tais fotografias. Até outro dia o governo federal vinha sendo acusado de ter praticado irregularmente uma manobra orçamentária que levava o apelido de “pedalada fiscal”. O assunto foi desgastante, a oposição bateu, mas acabou passando. Tudo passa, tudo sempre passará – a não ser quando alguém invoca o encosto de volta. As fotos de Dilma pedalando invocam o encosto. Não poderiam ser mais irônicas, involuntariamente irônicas.
Os governistas acreditam que a chefe de Estado em cima do selim, mãos firmes no guidão, brilha numa aura de saúde e vigor. Acreditam que as pedaladas presidenciais vão fortalecer a popularidade das medidas de Joaquim Levy. No que se refere aos oposicionistas, estes creem que a estratégia oculta da presidente é fazer propaganda das ciclovias da Prefeitura de São Paulo, que podem virar um ciclopalanque nas eleições municipais do ano que vem. Uns e outros se equivocam, é claro. Só o que está certo é o sentido que escapa, que vaza, que desliza.
As fotografias falam, e falam com palavras. As fotografias de Dilma na bicicleta fazem falar o ato mais incômodo: que Dilma pedala de fato. Daí para um apelido constrangedor é questão de uma volta no pedal.
Os signos não são obedientes. Quando maltratados, então, costumam ser insurgentes. E no que se refere a Judas, ele que nos perdoe.
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