O Estado de S.Paulo - 09/05
Não há como não reconhecer o mérito das administrações petistas em promover mudanças na política econômica a fim de conferir maior ênfase às questões distributivas, para atenuar um quadro secular de má distribuição de renda, que nos coloca entre os países mais desiguais do mundo. Cumprida uma parte importante, ainda incompleta, da agenda de estabilização monetária, fazia todo sentido que o governo Lula criasse programas governamentais de transferências interpessoais de renda, para reforçar os efeitos benéficos do programa de maior impacto redistributivo, o próprio Plano Real.
O Bolsa Família é um bem-sucedido programa de redistribuição de renda, pois é focado em grupos socioeconômicos mais vulneráveis e previamente identificados, é financiado via dotações orçamentárias e é acompanhado por algumas exigências, relacionadas a cuidados com a educação e saúde das famílias beneficiárias, que aumentam a efetividade do programa. De acordo com relatos oficiais, o Bolsa Família atinge hoje 36 milhões de beneficiários, sendo extremamente importante para manter um determinado nível de demanda, de renda e de emprego em algumas regiões do País.
Paralelamente a essa melhoria nos indicadores de distribuição de renda, estamos sendo submetidos a um processo inflacionário persistente que, em certa medida, pode contribuir para desfazer parte dos benefícios dos programas oficiais de transferência de renda, como parte das inúmeras distorções econômicas provocadas pela inflação.
No Brasil, anos de convivência com taxas elevadas de inflação, antes da introdução da correção monetária, e a experiência de outros países que enfrentaram surtos de alta inflação já mostraram os efeitos nocivos daquele processo sobre as finanças empresariais, ao dilapidar o capital de giro, os fundos para compensar a depreciação dos ativos fixos e para evitar a obsolescência tecnológica e aqueles recursos destinados ao financiamento de projetos de investimento de longo prazo. Todos esses impactos sobre as finanças empresariais continuam presentes hoje, mesmo com uma taxa de inflação mais civilizada e na ausência de mecanismos formais de indexação.
No entanto, além dos efeitos sobre as finanças das empresas, sabe-se que a persistência de uma taxa de inflação nos níveis atuais por prazos longos provoca distorções na distribuição de renda, ao corroer salários e ordenados fixados em termos monetários ou cuja variação não acompanha a elevação do custo de vida. Essa queda nos salários reais é uma forma de tributação arbitrária sobre o fluxo de renda dos assalariados, cuja incidência é aleatória, penalizando mais os que percebem remunerações fixas em termos nominais, vale dizer, empregados nos setores público e privado, aposentados e pensionistas e trabalhadores sobrevivendo no setor informal da economia. Além do mais, a inflação não apenas reduz a capacidade de adquirir bens e serviços correntes, ao contrair os salários reais, mas também penaliza o estoque de ativos monetários das famílias e dos indivíduos, com a diminuição do valor real da riqueza mantida sob a forma de saldos monetários. A inflação reduz a capacidade de consumo atual e também o padrão de vida futuro dos detentores de riqueza fixada em termos nominais. Dessa forma, ela pode funcionar como um mecanismo de transferência intertemporal de desigualdade de renda.
Em resumo, observa-se, nas duas últimas administrações, um processo consentido de redistribuição de renda, cujo melhor exemplo é o Bolsa Família, que é focado, com tamanho e custos conhecidos e cujo resultado pode ser avaliado. Em contrapartida, ocorre também um processo de concentração de renda, que não passa pelos canais formais de aprovação política, cujo tamanho e incidência são arbitrários e difusos, mas que penaliza com maior rigor os que recebem fluxos de renda fixos e cujos ajustes anuais não acompanham a taxa de inflação. Não se trata evidentemente de apurar o efeito líquido dos dois processos divergentes e contraditórios. Trata-se, isso sim, de dar fim a uma atitude de complacência com a inflação, que nos faz mirar o teto da meta como sendo a versão tupiniquim do regime de metas de inflação. E, ao fazê-lo, permite o funcionamento de um mecanismo perverso de concentração de renda que contradiz a retórica oficial das duas últimas administrações, comandadas por um partido político supostamente destinado a defender os interesses dos trabalhadores.
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