FOLHA DE SP - 09/05
O Estado é tentacular, mas está onde não deve e não está, não de modo eficiente ao menos, onde deve
Fabiane Maria de Jesus, a mulher que foi espancada até a morte no bairro de Morrinhos, no Guarujá, começou a ser agredida porque, ao oferecer uma banana a uma criança, foi confundida com um fantasma criado pela irresponsabilidade de uma página na internet. Tomaram-na por uma sequestradora de crianças, que usaria os infantes em rituais de magia negra.
Trata-se de uma história infantil de desfecho trágico. Lá estava a bruxa da hora oferecendo uma maçã envenenada -no caso, a banana- a um inocente. O mal se apresentava nas vestes do bem, a fazer uma doação para conspurcar a pureza. À diferença da narrativa original, esta não teve um desfecho feliz. A bruxa era só uma dona de casa que tinha ido buscar a Bíblia, que esquecera na igreja. A fruta que ela oferecia era mesmo uma doação. Dava pão a quem tinha fome, a primeira virtude. Seus algozes mancharam as mãos de sangue e, no entanto, até onde se sabe, não tinham um histórico de crimes.
Li muito a respeito. Há tentações para todos os gostos. Como é que gente trabalhadora, que luta para ganhar a vida, pratica esses desatinos? "Sou homem, e nada do que é humano é estranho a mim", escreveu Terêncio. Ainda que a frase possa servir à especulação teórica e que carreguemos em nós todo horror e toda maravilha, não creio que se possa avançar muito por aí. A questão é outra: quem vai conter a besta? Pensadores os mais diversos deram a sua resposta ao longo da história. Houve quem recomendasse um Estado tirano como o único capaz de disciplinar os apetites humanos. Não me parece um bom caminho. Só açula a... besta!
Percebo, de um lado, a tentativa de buscar na nossa formação algo que explique a tragédia; no outro extremo, procuram-se eventos recentes que teriam gerado algum desequilíbrio, de sorte que aquele povo pacífico, mas potencialmente violento, teria voltado à sua natureza. Acho tudo exagerado e despropositado. Não há nenhuma ocorrência que explique a barbárie. Número a número, o Brasil melhora sempre um pouco, em vez de piorar. Também não se trata de uma índole. Não temos de temer a nossa natureza, só as nossas escolhas.
Entrem na internet. Há linchamentos diários de norte a sul do país. Não são uma novidade. Nova é apenas a tecnologia que permite que fiquemos sabendo desses atos criminosos. É bem possível que, no mais das vezes, as vítimas não sejam inocentes, como era Fabiane. E daí? O assassino mais facinoroso tem, e deve ter, o direito a um julgamento justo. Se essa noção não está interiorizada e não se transforma num dado de civilização, então se caminha para o pior dos mundos. Mas esperem um pouco!
Que país o nosso, não é!? Notaram como temos Estado demais em petróleo e de menos em segurança pública? Notaram como temos Estado demais em energia elétrica e de menos em educação? Notaram como temos Estado demais no setor bancário e de menos em saneamento e urbanismo? Esse Estado é gigantesco e tentacular, mas está onde não deve e não está, não de modo eficiente ao menos, onde deve. Para os que lincharam Fabiane, ela era uma criminosa, e se cultiva a certeza por lá e em toda parte de que os criminosos, neste país (como diria aquele), permanecem impunes -o que é verdade com uma frequência assombrosa. Há mais de 50 mil homicídios por ano no Brasil.
Os assassinos improvisados de Fabiane carregam nas costas um Estado que não conhecem e conhecem um Estado que não existe para eles. Organizam, então, tribunais populares, nos quais, como prova a história, a inocência é sempre a primeira vítima. Têm, sim, de pagar caro por seu ato bárbaro. Mas também vão expiar a culpa de um modelo de que são vítimas.
E arremato observando que, nos últimos tempos, há um indiscreto incentivo no país ao "faça você mesmo a sua justiça social", sem dar bola para as leis. Não se iludam: quem flerta com depredadores do bem público, com invasores da propriedade alheia e com incendiários da ordem democrática -leu bem, presidente Dilma?- está dando uma piscadela a linchadores. É a maçã envenenada da desordem.
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