O ESTADÃO - 05/03
Quando converso com amigos, colegas e alunos sobre o ato de escrever, encontro uma clara distinção. Meus companheiros universitários não dizem apenas que escrevem: eles publicam. E hoje, graças ao regime imposto ao mundo da pesquisa e do ensino superior, esse publicar é requerido e medido. Dependendo do órgão no qual se publica, o texto vale mais ou conta menos pontos para o autor e para o seu departamento independentemente do seu, digamos com a devida vênia, valor intrínseco. Jornalistas registram mais do que todo mundo e pouco dizem: eu “publico”. Eles escrevem.
Professores e pesquisadores, entretanto, falam com justo orgulho que publicam em revistas exclusivamente devotadas à ciência nos países que inventaram esse jeito de olhar o mundo, ainda que os seus ensaios sejam às vezes contra esse mundo. Curioso e pungente ler um documento contra a acumulação capitalista ser preferencialmente publicado numa revista dos países que inventaram a poluição, o luxo e o lixo.
Deixando de lado essas pequenas contradições, dignas de uma Quarta-Feira de Cinzas, vale acentuar as máscaras usadas no escrever e no publicar.
Posso falar disso porque conheço bem o seu feitio. Elas, de saída, chamam à memória o cisma ocidental entre o popular e o erudito; o que seria geral e raso e o que seria exclusivo e denso.
A distinção radical entre o erudito e o popular chegou forte na minha consciência quando, estudante em Harvard e depois professor visitante na Universidade da California-Berkeley e Cambridge (Inglaterra), eu descobri o tratamento marginal dado à música comum e banal dos Gerswhin, Cole Porter e Irving Berlin — e a centralidade das vertentes musicais clássicas, todas europeias.
A televisão ficava escondida e os seus programas populares eram falados somente entre os estudantes. Eram, como uma vez me disse um pomposo colega, professor de antropologia cultural de Berkeley, “coisas do homem comum”. Esse sujeito diferente de nós — ou melhor, “deles”. Porque eu não distingo o popular do erudito. Aliás, eu penso que, em matéria de arte e pensamento, existem coisas boas e ruins, coisas claras e confusas.
Como estamos na pausa que inaugura o período que justifica a licença carnavalesca — essa quaresma dada nas flores roxas que lembram a finitude e a morte — lembrei-me dessas duas máscaras. A que visto quando publico um artigo acadêmico, cujo código demanda descoberta, erudição, contenção, resolução de um problema e o desejo de uma modesta eternidade; e quando escrevo a coluna do jornal. Um texto que demanda um outro tipo de disciplina — a da simplicidade, do transitório, do palpite e, às vezes, da insegurança.
Num caso, a recompensa são o reconhecimento e a referencia obrigatória; no outro, o pagamento é um honorário, ou a menção ligeira de algum amigo num “gostei” ou simplesmente o “não li”, o que nos dá uma medida da banalidade da vida que é, quem sabe, a função mais profunda dos jornais diários.
Quando “publiquei” ensaios acadêmicos pautado pelas teorias e dados de pesquisa, tentei fazer a “minha teoria” — à “contribuição” recebi como resposta a crítica feroz ou simplesmente arrogante. Descobri que a minha esforçada publicação espalhava ignorância. Quando escrevo no jornal e uso a máscara do quase-escritor, eu ganho uma liberdade carnavalesca. A que, como tudo na vida, sabe que tem começo e fim e vai mesmo embrulhar o peixe. Mas não me esqueço das máscaras do “publicar”.
No meu caso, escrever para o jornal se parece com uma revelação. A máscara do publicar faz, por certo, o oposto. Na publicação acadêmica, o texto deve a si mesmo uma seriedade de tal ordem que pode torná-lo risível ou ridículo. No cronista, porém, a mistura de imaginação e realidade produz uma escrita obrigada a rir de si mesmo porque seu autor sabe ser impossível inventar toda santa semana. O ensaio acadêmico, por sua vez, tem um leitor crítico e impaciente. A crônica, pelo contrário, pede pelo amor de Deus um leitor compassivo.
Essas escritas são críticas. Elas não se excluem. Alternam-se e tem muita sorte quem pode praticá-las com o coração aberto.
A máscara risonha do carnaval é usada pelo escritor que deseja fazer rir. O riso se repete e a gente ri daquilo que é repetido mecanicamente como mostrou Bergson. Já a máscara do texto acadêmico, um tanto mais trágico, corresponde ao uniforme dos mandões e dos moralistas ideológicos. Ela é parte da coroa de espinhos chamada de “discurso histórico”, o qual, dizem os crentes, foi usado pelos heróis. O riso solicita compaixão e inclusão; o discurso desperta paixão e, Deus nos livre, paredão. Felizes cinzas.
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