O Estado de S.Paulo - 03/02
"Vou deixar bem claro para você. Se me tratar assim de novo, eu atiro você desta f*@#ing sacada. Você não é homem o bastante! Eu vou partir você ao meio como um menino."
Por cortesia do cinegrafista que não parou de gravar, testemunhamos a explosão de Michael Grimm, o único deputado federal que o Partido Republicano conseguiu eleger em Nova York, no Congresso atual. Depois de acordar na quarta-feira dizendo que não havia feito nada errado, o representante do bairro nova-iorquino de Staten Island sentiu os ventos desfavoráveis e telefonou para o Michael Scotto, do canal de notícias nova-iorquino New York 1, pediu desculpas e o convidou para almoçar. O que pode ter deixado o jovem repórter, que cobre o Capitólio, mais nervoso ainda. Deixemos de lado o peso da palavra "boy", que, nos Estados Unidos, tem várias conotações, inclusive a usada por brancos para implicar inferioridade racial.
O incidente aconteceu logo depois do discurso de Barack Obama sobre o Estado da União e, no final da entrevista sobre o discurso, Scotto perguntou sobre a investigação federal acerca da campanha do deputado. Uma correligionária sua já foi presa, acusada de fraude eleitoral. Grimm se afastou sem responder mas voltou para ameaçar o repórter, segundos depois.
A avaliação de Grimm sobre a insuficiência de virilidade do repórter está longe de ser uma anomalia. É só dar um rolezinho pelos canais que exibem reality shows americanos para constatar que a definição neandertal do que constitui um homem está viva e dando lucro para anunciantes.
Escrevo no fim de semana do maior e mais rico evento esportivo dos Estados Unidos. O Super Bowl celebra um esporte que 40% dos pais americanos não querem ver seus filhos praticar. Até Barack Obama, pai de duas meninas, deixou claro que considera o esporte perigoso demais. A audiência esperada para a transmissão final entre os Denver Broncos e os Seattle Seahawks era de mais de 100 milhões, um terço da população do país. Está sendo ancorada por ex-jogadores que também denunciam os traumas cranianos epidêmicos no esporte. Um dos mais idolatrados quarterbacks da história do esporte, Joe Namath, 70 anos, com sua bagagem de ferimentos e concussões cerebrais, deu uma entrevista à CBS na manhã da final, dizendo: "Nenhuma parte do nosso corpo foi feita para jogar este futebol."
Há décadas que a NFL, a liga milhardária de futebol americano, tem conhecimento médico suficiente para compreender as consequências do esporte. No ano passado, concordou em reservar mais de US$ 700 milhões para um fundo de compensação de ex-jogadores. Mas, não é apenas o interesse econômico de uma liga que atrasou o despertar da consciência do público para o esporte. O futebol americano é indissociável da definição de homem difundida por gente como o deputado Michael Grimm.
Há alguma justiça poética no fato de que a final do Super Bowl, ontem à noite, foi no estado de Nova Jersey, epicentro atual de um escândalo envolvendo machos alfas da política americana. São, de fato, vários escândalos em torno do governador Chris Christie, mas o primeiro e mais conhecido no exterior é o Bridgegate. Em setembro, a mais movimentada ponte do continente, a George Washington Bridge, entre Manhattan e Nova Jersey, teve parte de suas pistas bloqueadas numa vendeta política ainda mal explicada e um engarrafamento monstro paralisou a área durante quatro dias. A cada nova revelação sobre os métodos de Christie, os comediantes encontram novo material para fazer piadas sobre a truculência estilo Tony Soprano.
O que nos faz lembrar: no debate da testosterona, democratas como Barack Obama são maricas e Chris Christie é o cabra macho. Cito um âncora conservador que veio em socorro de Christie logo depois da revelação do Bridgegate: "Devo dizer que, nesta atmosfera de feminização que existe hoje, os caras masculinos e musculares em sua conduta privada, os caras da velha guarda, estão sob risco."
Certo. Arriscar a vida de uma criança desaparecida porque o carro de polícia está preso na ponte ou chegar tarde demais para atender a idosa que teve um enfarte porque a ambulância também não consegue passar são ações justificadas em nome da preservação dos "caras da velha guarda". É o que se define, no jargão contemporâneo, como "mansplain", o mundo explicado sob a ótica masculina. O mansplaining do Partido Republicano acaba de nos presentear com outra joia: "As mulheres não conseguem controlar sua libido sem ajuda do governo." O ex-governador do Arkansas Mike Huckabee resumiu assim a decisão do governo Obama de manter anticoncepcionais nos programas de seguro médico.
Chris Christie recebeu uma vaia sonora da multidão na Times Square, no sábado, durante uma cerimônia ligada à final do violento futebol americano. Um esporte e um governador sob ataque, num mundo em que o homem de verdade não se parece mais com eles.
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