O ESTADÃO - 26/01
Não é de hoje que o Brasil vive o dilema de administrar duas contas: a de chegar e a de sair. A primeira abriga repertório, programas e atos que impulsionam o país, garantindo uma escalada crescente na esfera das Nações, o que lhe confere respeito, credibilidade para levar a cabo metas e aspirações. Um exemplo? O avanço alcançado pela política de inserção social, que propiciou a ascensão de cerca de 30 milhões de brasileiros às classes médias. Um tento. Já a conta de sair reúne o acervo das demandas e carências, erros, falhas e ausências do Estado no exercício de suas funções constitucionais, manchas que borram a imagem de um país na paisagem internacional, e, consequentemente, o impedem de ostentar a marca de grandeza. Um exemplo? Os recentes episódios no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, cujos detalhes – decapitação de corpos, enforcamentos – ganharam espaços na mídia mundial, projetando estes nossos trópicos no ranking da barbárie e fragilizando seu discurso nos palcos da diplomacia. Uma vergonha. Afinal, qual a maior ambição brasileira na esfera da política internacional? Ter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.
"Desde os anos 90, fragmenta-se o cordão da segurança pública. Já existem mais de 500 mil adultos encarcerados, número que cresceu 30% nos últimos cinco anos”
Mesmo que reunisse condições para tanto, seria irrefutável a hipótese de que uma Nação democrática, caso queira emprestar colaboração à meta de manter a paz e a segurança internacional, função que compete ao Conselho de Segurança, precisa demonstrar compromisso com sólida política de segurança interna. Não é o nosso caso. Um território inseguro, assaltado pela violência, que registra 50 mil homicídios anuais, um déficit de 200 mil vagas no sistema carcerário, e onde cerca de 20 pessoas desaparecem diariamente sob alarmantes violações aos direitos humanos, estaria confortável numa cadeira do órgão que define diretrizes para a segurança mundial? Não seria o caso de inferir que, ali, o Brasil acabaria produzindo incongruente discurso, do tipo: “Faça o que digo, mas não faça o que faço”? O grau de arrogância e autossuficiência que se vê em diversas frentes da vida institucional – expandido na esteira do bordão “pela primeira vez na história deste país” – funciona como viseira de governantes incapazes de enxergar desvios, corrigir rumos e aceitar sugestões.
Antes, porém, que o epíteto de “catastrófico” seja jogado nestas linhas, façamos o exercício de identificar alguns traços da grandeza nacional. Somos uma potência emergente, com elevado papel nos fóruns de decisão política e econômica, graças ao desenvolvimento alcançado nas últimas décadas. O Brasil encontrou o fio da meada, pagou a dívida ao FMI, exerce um papel de liderança entre os países da América do Sul, tem razoável influência na América Central e ajuda países da África, com os quais mantém estreitas relações. Nossa democracia dá sinais de vitalidade, com o funcionamento pleno dos Poderes, apesar de tensões frequentes, não havendo ameaças de rompimento nos dutos democráticos. A população, já ultrapassando 200 milhões de pessoas, se anima na esteira da mobilização de grupos e comunidades, a denotar crescente interesse em participar do processo político. Nosso sistema de consumo se expande sob empuxo de políticas de redistribuição de renda.
Dispomos de moderna estrutura de produção, com monumental seara plantada pelo agronegócio, um animado setor de serviços em expansão, um parque industrial arrojado (mesmo padecendo de agruras) e promissoras perspectivas nos campos da exploração de petróleo (pré-sal). O país conquistou, mais recentemente, o comando da Organização Mundial do Comércio, tem a China como principal parceiro comercial, sinaliza expansão na política multilateral e vontade de fortalecer vínculos com os EUA e a Europa. Integra o G-20, o grupo que toca a orquestra da economia internacional. E participou de operações de imposição de paz e ajuda a governos em diversos territórios, como República Dominicana, Canal de Suez, Angola, Moçambique, Líbano, Timor Leste e Haiti. Essa é, portanto, a base do um portentoso edifício, ou, em outros termos, a conta de chegar para disputar espaços de mando e influência na textura das Nações. O que falta, agora, é estreitar a conta de sair, ou seja, atenuar e mesmo eliminar as tintas que enfeiam a paisagem dos nossos campos e cidades, a começar por declives e despenhadeiros nos vãos da segurança pública.
O país tem afundado neste lamaçal. Desde os anos 90, fragmenta-se o cordão da segurança pública. Já existem mais de 500 mil adultos encarcerados, número que cresceu 30% nos últimos 5 anos, mas 43% dessa população excedem a capacidade do sistema prisional. E há 200 mil presos aguardando julgamento. Soma-se a esse contingente 20 mil adolescentes que cumprem medida socioeducativas com privação de liberdade. As projeções são sombrias. Frágeis índices de escolaridade, desigualdade, tortura em delegacias e centros de detenção, quadros policiais muito violentos, execuções extrajudiciais, superlotação das prisões, impunidade para abusos, salários vergonhosos de policiais, pobreza nas periferias, ausência de espaços de lazer, falta de treinamento, desaparelhamento de estruturas, a par das angústias urbanas – precários sistemas de mobilidade, atendimento precário dos centros de saúde – arrematam a descosturada malha da segurança e elevam às alturas os índices de violência. O copo das águas destoantes transborda. Os direitos humanos são hasteados nos mastros da cidadania, a deixar ver o apurado gosto nacional por verborragia bombástica. Mas o vento das ruas rasga discursos. Não por acaso, o assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional no Brasil, Maurício Santoro, proclama: “Há por aqui um déficit de justiça muito grande. O Brasil é um país com ótimas leis, mas que não são cumpridas”.
Ora, o velho Barão de Montesquieu já lidava com esse mote. Vivia dizendo: “Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se são executadas as que há, pois há boas leis por toda parte”.
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