sábado, dezembro 07, 2013

Um pulo em São Paulo - ARNALDO BLOCH

O GLOBO - 07/12

Tudo cheirava a casa de praia e de serra, e urbana e interiorana, Shangri-lá do pertencimento ao mundo


O pretexto para ir a São Paulo após um longo afastamento era a exposição sobre Stanley Kubrick. A verdade, no entanto, era outra: o que me impelia rumo à Pauliceia era uma necessidade de sair do Rio por ao menos um fim de semana para outra metrópole. Uma metrópole tão brasileira/próxima quanto estrangeira/distante. Sair sem motivo. Sem trampo. Para desapegar da toca do Leblon.

Dar uma espanada na preguiça e um “inté” aos circuitinhos. Rejeitar os mimos e comodidades da província solar, a ex-capital que sonha, vã, ser de novo o centro do mundo, como era Copacabana nos anos 1950.

Olhei para o centro do umbigo e tomei coragem de abordar o assunto.

— Precisamos conversar.

— Deixa-me, vai passear, vai a essa São Paulo — disse o umbigo, com um muxoxo.

Seguindo a moda atual, escolhi um voo que saísse do Galeão e pousasse em Congonhas.

Além de mais barato, era sábado de noitinha, o que, num aeroporto maior, dava jeitão de rota internacional a um pulo aéreo de 40 minutos movido a ração de biscoito e refri.

Em Congonhas, liguei para Reinaldo Moraes, autor do melhor livro brasileiro do novo milênio, “Pornopopeia” (Objetiva), e pedi com sinceridade que me pusesse em algum trem noturno para a alta diversão.

— Grande! Mais tarde vai ter um samba. Samba paulista. Numa casa nos Jardins. Liga para a Martha. Eu apareço.

Mulher de Reinaldo, Martha Garcia, minha adorável editora em seus tempos de Companhia das Letras (recentemente, foi para a Cosac Naify), estava numa peça de teatro e prometeu me responder mais tarde. Eu já me encontrava coberto quando recebi a ligação.

— Então? Vamos?

A casa nos Jardins, de grandes amigos da Martha e do Reinaldo, não era daquelas opulentas. Era apenas bela, espaçosa e bem dividida, e tinha, claro, um jardim, modesto e belo.

Achei que ouviria Adoniran até o sol raiar, mas do piano, dos bongôs, do tantans e do tamborim só vinha samba carioca, algumas bossas, Chico Buarque (esse é meio paulista) e tal.

A roda era formada por médicos amadores de música, e a coisa tinha suingue. Rodopiando como um pião, um pequeno barril (ou seria uma grande lata?) de chope portátil era franqueado, para molhar o gosto dos intrigantes pães de linguiça com massa de folheado herbáceo.

Mais tarde pintou uma aguardente de ameixa que disseram ser tcheca, mas que a dona da casa se prontificou a declarar croata.

A certa altura todos, inclusive os que estavam no jardim, se reuniram em torno do piano para decidir a saideira, o que desaguou numa série de várias saideiras. A coisa terminou com o “Hino à Bandeira” e, em alto grau de emoção, fechou com “galo cantou às quatro da manhã”. Embora fossem de fato quatro da manhã, não havia galos nos Jardins, nem mar nem céu azul, mas era como se fosse o alto do Vidigal.

Na saída, Reinaldo Moraes me perguntou, com seu ar de sacana-do-bem.

— E aí? O que achou da nossa demonstração de brasilidade?

No dia seguinte tinha encontro marcado com meu amigo Mineiro. Juntos fomos à expô do Kubrick, pretexto da viagem. Um parquinho de diversões. Uma kubricklândia. Mas tem o starchild (bebê onisciente) original de “2001” e uma quantidade inacreditável de documentação, como diálogos centrais rabiscados pelo cineasta, organogramas de filmagem, croquis, maquetes e fotos.

Kubrick dá fome: almoçamos, numa cantina, uma suntuosa (e quase líquida de tão macia) perna traseira de cabrito acompanhada de um saladão cujos tomates e agriões pareciam ter sido plantados em Itu.

A noite de domingo acabou me levando a um lugar chamado Balcão, de tradição aparentemente liberal e com um excelente cheeseburger, embora o whisky sour fosse frutoso demais para um apreciador.

Mais tarde, fui parar num apartamento em Santa Cecília (vizinho de Higienópolis) que se parecia com o ideal que eu tinha, quando menino dos anos 1970, do que seria uma casa moderna, descolada, hippie, culta, com madeiras, objetos, almofadas e uma cozinha “livre”, um lindo pandemônio perfeitamente equilibrado nas asas da imaginação.

Da janela via-se um morrinho, e tudo ali cheirava e soava a casa de praia e de serra, e urbana e interiorana, espécie de Shangri-lá do pertencimento ao mundo.

Cheguei ao hotel com os sentidos largamente expandidos e compus, num programa de computador (Sibélius), uma versão altamente contrapontual do “Hino à Bandeira”.

Voltar ao Rio foi estranho. Era como se eu tivesse feito uma longa viagem a outra galáxia através de um portal de ponte aérea. E cá estava o Rio, doce e indiferente, a caminho do mar, ou do trabalho, naquele passo mais sossegado, ou ao volante, melancólico com o engarrafamento. Quando cheguei em casa, não encontrei o umbigo que deixara.

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