A carta começa assim:
“Rio de Janeiro, 23 de junho, 1980.
Poeta querido:
Continuo malacafento, mas tenho notícias boas de você, por amigos comuns, e isso me alegra.”
Drummond estava malacafento. Ou seja, com malaca. Por isso não pôde visitar Vinicius de Morais. A malaca dele era herpes-zóster. Surpresa é essa palavra que usou: malacafento. Na minha casa, ouvia as irmãs usando este adjetivo, que sei lá onde aprenderam. Supunha que significava mal vestido, abobado, algo assim. Acabei de descobrir que é “adoentado, achacado, indisposto”, como me contou o Aurélio.
Conferi com dois portugueses se por lá o adjetivo é mais usado. Ao buscar a origem de “malaca”, soube que é o nome de uma cidade na Malásia onde os portugueses se instalaram na mesma época em que chegaram por aqui. São Francisco Xavier andou por lá. Camões falou dela. Pois o Rui Amaral Mendes e o Rui Manuel Amaral, ambos da cidade do Porto, me garantiram que ninguém é chamado de malacafento em Portugal. O Rui Amaral não conhecia a palavra. O Rui Manuel conhece, mas disse que é rara e nem consta no dicionário que ele consultou.
Não conheço nenhum dos dois Ruis. Encontrei-os no Facebook e eles devem estar se perguntando de onde saiu a brasileira que usa palavras estranhas e aborda desconhecidos. Perigosa não sou, garanto aos Ruis. Às vezes, malacafenta, admito.
A carta de Carlos Drummond de Andrade a Vinicius está no Arquivinho publicado pelo Instituto Moreira Salles com reproduções de materiais de seu acervo. Acervo fantástico, que vem recebendo documentos de músicos, escritores e fotógrafos de várias gerações e lugares do Brasil e fazendo bom uso dele. Vale a pena visitar o Instituto na internet.
Três anos depois da carta a Vinicius, Drummond voltou a usar suas dores para se desculpar com um amigo. Desta vez escreve para Cora Coralina, que havia lhe enviado um livro novo. É 7 de outubro de 1983 e o poeta diz: “Não lhe escrevi antes, agradecendo a dádiva, porque andei malacafento”.
O ser humano passa a vida tentando se descobrir e se impor. Eu preciso que o mundo reconheça quem sou ou serei ninguém, um vulto impreciso, uma sombra solitária. As palavras que usamos e a forma como as usamos são só nossas. Por isso não gosto de modismos, de gírias que todo mundo repete por meses e depois esquece. Elas nos pasteurizam, homogeneízam, sombreiam. As palavras que adotamos fazem o vulto se transformar em um ser completo. Meu pai elogiava com um “batuta”, minha mãe com um “consciencioso”, a amiga Rosy fala em pessoas da “melhor cepa”. Eu os vejo nessas palavras, nas palavras eles sempre estarão.
Em casa, me chamaram de malacafenta. Não me ofendi. Agora menos ainda. Drummond andou muito malacafento, perdeu um encontro com Vinicius de Morais, fez feio com a Cora Coralina e por causa de suas palavras nós lhe perdoamos tudo.
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