sexta-feira, dezembro 20, 2013

Um pouco de silêncio - MICHEL LAUB

FOLHA DE SP - 20/12

Para um cronista de meio século atrás, digamos, o maior temor era a falta de assunto. Hoje é o contrário.


Desde o surgimento da internet, é difícil ler um texto como "A Boa Manhã", de Rubem Braga, que identifica a felicidade com a ausência do que dizer. Em qual dia de 2013, ano em que houve o julgamento do mensalão, os protestos de junho, o intérprete falso no funeral de Mandela e a glória do rei do camarote, foi possível resistir à compulsão de se expressar?

Não que o mundo seja mais movimentado hoje. O que aumentou foram os veículos para que corram versões dos fatos. O modernismo errou ao decretar a morte da narrativa. Idem quem segue falando da morte da ficção. Pois o que mais há agora são narrativas ficcionais: o tipo de relato sobre nós mesmos, mediado pela idealização --tudo falso, portanto-- que fazemos de nossa inteligência, cultura, humor e experiência social.

O pior pecado de um colunista é ser previsível. Caio nele com frequência, como o leitor deve perceber, mas tento fugir do figurino tradicional dos que agem assim: blocos monolíticos de opinião, que alinham qualquer controvérsia --do casamento gay ao modelo de exploração do campo de Libra-- segundo um sistema que parece coerente.

Só parece: muita gente defende a liberação das drogas e é a favor de restrições policialescas para o tabaco. Parte dos que condenam o aborto baseados no princípio de proteção à vida apoiam a pena de morte. Parte dos que advogam a separação entre religião e Estado no Ocidente se enchem de tolerância multiculturalista ao analisar teocracias. O paradoxo não impede, claro, que se aponte o dedo para a desonestidade, agressividade e ignorância dos adversários.

(Para não deixar dúvida: sou a favor do casamento gay e da adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo. A favor da separação entre Estado e religião sempre. A favor do tratamento de drogas e aborto como questões de saúde pública, e não de polícia. Contra a propaganda de cigarro e a pena de morte. Nada tenho a dizer sobre o campo de Libra.)

O segundo pior pecado de um colunista é se apaixonar pela própria retórica. Como a frase melhora quando tiramos dela as adversativas, não é mesmo? Tudo fica mais irônico e viril. O ritmo do parágrafo anterior, que já não é lá muito harmonioso, ficaria pior se eu incluísse a construção "não acho, todavia, que religiosos são obscurantistas por definição".

Ou "no debate do aborto, estou mais do lado pragmático --que tenta evitar mortes de mães em partos sem cuidados e desestruturação familiar por gravidezes não desejadas-- que no de princípios, pois tenho dificuldade em lidar com o 'conceito político' de vida".

Ou "no das drogas, ao contrário, penso mais na liberdade de cada um usar o que quiser, fazendo mal a si mesmo inclusive, que nas consequências. Tenho dúvidas se o consumo diminuiria com uma flexibilização da lei. E se o crime organizado não mudaria apenas de droga ou de ramo, caso perdesse os atuais lucros com a maconha".

Ocorre que é nas adversativas que pode estar a precisão. O estilo piora, mas é difícil pensar sobre um tema sem ao menos testar --com a empatia que estiver ao alcance-- a viabilidade lógica e moral do argumento contrário.

Algumas coisas são inegociáveis, claro, mas nem toda ponderação é sinônimo de relativismo covarde. Assim como nem toda omissão. Pierre Bayard escreveu um ensaio divertido chamado "Como Falar dos Livros que Não Lemos" (Objetiva).

Gostaria que alguém escrevesse um com a tese oposta: como resistir em falar dos livros que lemos, dos filmes que vimos, do que aparece na TV ou do que comemos no almoço, e do trânsito e da poluição e da péssima qualidade dos serviços na cidade e assim por diante.

Seria um bom final para este longo 2013: um pouco de vazio e tédio em vez do fetiche do registro e do movimento. Uma paisagem à beira da praia sem o filtro de um aplicativo. Nenhuma hashtag comentando o desempenho sexual de ninguém. A experiência fora do alcance do relato, a vida que não precisa ser classificada e explicada nos limites --sempre mais estreitos-- da linguagem.

Um pouco de silêncio, portanto.

Feliz Natal. Feliz Ano-Novo. E boas férias para mim (deve dar para perceber que estou precisando).

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