FOLHA DE SP - 24/12
Não haverá promoção social sem que as pessoas aprendam a lutar pelo que desejam. O assistencialismo é uma forma disfarçada de escravismo
No momento em que o mundo reflete sobre o significado da vida e da luta de Nelson Mandela, o Brasil pode se perguntar: o que foi feito dos sonhos de Zumbi dos Palmares, Tiradentes e José Bonifácio?
Aqui, infelizmente, prevalece a máxima celebrizada pelo escritor italiano Lampedusa: algumas coisas mudam para que tudo continue como sempre foi.
É impressionante a permanência, entre nós, de ilhas de modernidade em meio a um oceano de arcaísmos. Edifícios luxuosos ao lado de favelas. O orgulho de uma Embraer e a vergonha de a rede de esgoto e água tratada não chegar a quase metade dos domicílios. A excelência da Universidade de São Paulo (USP) e a persistência de 13 milhões de analfabetos (8,7% da população).O contraste entre o rendimento mensal médio dos 10% mais pobres, da ordem de R$ 215 em 2012, contra R$ 18.889 dos 1% mais ricos.
Sucedem-se as gerações enquanto a iniquidade tributária e a baixa qualidade da educação e demais serviços públicos perpetua a desigualdade, em que pese termos conseguido retirar recentemente milhões de pessoas da miséria. Um rápido giro por nossa história comprova como avançamos sem sair do lugar, ou seja, sem mudar a realidade de que em nosso país apenas uma minoria tem acesso a bens materiais e culturais.
Ao passar de Colônia a Império, o Brasil continuou a depender do braço escravo, como nos séculos precedentes. Após a Abolição e a Proclamação da República, os que haviam sido escravos e seus descendentes não tiveram acesso a terra nem a qualquer tipo de instrução que lhes garantisse inclusão na sociedade urbana que surgia.
A Revolução de 1930 derrubou a oligarquia agrária e abriu caminho à industrialização, mas apesar de crescermos a taxas de 7% ao ano até a década de 1970, as duas ditaduras desse período paralisaram pela força a transformação social.
Um processo paralelo de anestesia das consciências tem início, como denunciado em 1974 pelo dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho. "Reduzir um país de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25 milhões exige muita sofisticação cultural. É preciso embrutecer esta sociedade de uma forma que só se consegue com o refinamento da comunicação, da publicidade e de um paisagismo urbano que disfarça a favela, esconde as coisas."
Restabelecida a democracia, a Constituição de 1988 criou outro país, pleno de direitos que, entretanto, até hoje não saíram do papel. Para que isso acontecesse, seria necessário: aumentar para 25% a taxa de investimento em relação ao PIB para que este possa voltar a crescer 7% ao ano; tornar a tributação menos regressiva para reduzir a desigualdade na distribuição de renda e erradicar a pobreza extrema; elevar a escolaridade média do trabalhador e desonerar a folha de salários para eliminar a informalidade; assegurar 100% de acesso a saneamento ambiental e garantir proteção social a todas as famílias em situação de vulnerabilidade; romper a transmissão intergeracional da desigualdade através da melhoria dos serviços básicos e da infraestrutura urbana.
Não haverá promoção social, porém, sem que as pessoas aprendam a lutar pelo que desejam. O assistencialismo é uma forma disfarçada de escravismo. Mudanças efetivas dificilmente resultarão de eleições dominadas pelo marketing, que discutem mais o prontuário policial dos adversários do que políticas públicas.
Diante da ausência em nossa história de estadistas como Mandela, teremos que contar com nós mesmos e nossa força de sociedade organizada se quisermos, como ele, um desenvolvimento lastreado em igualdade, diversidade, participação, solidariedade e liberdade.
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