O Estado de S.Paulo - 24/12
Todo ano eu escrevo sobre o Natal no Natal. Hoje, escrever sobre quê? Sobre o "mensalão"? Sobre o Natal na Papuda? Todos os natais são iguais: um sentimento de solidariedade jamais praticada durante o ano. Eu tento ser original, mas esbarro na mesmice dos dias natalinos; parece que o tempo é o mesmo dos anos cinquenta. Por isso só me resta repetir ideias dos melhores trechos de anos passados.
Os primeiros indícios do Natal surgem com ralas bolinhas douradas nas lojas, depois uma arvorezinha, ate que aparece a figura eterna de Papai Noel.
Não creio que Papai Noel seja muito querido, a não ser pelas criancinhas ainda sem web e videogames; os adultos sentem um vago mal estar diante daquele S. Nicolau que foi inventado na Noruega, aquelas barbas e roupinha quente para nosso verão. O que inquieta é a total falta de relação do Papai Noel com nossa vida cotidiana. De repente, ele surge como um invasor sorridente, um embaixador do Polo Norte, como um RP para lojas e supermercados, como se dissesse em seu ho ho ho: "Não se preocupem...tudo está bem...eu sou a bondade e o mundo muda mas eu não. Estarei sempre aqui, uma vez por ano. Rodeado por meus veadinhos e entrando pela chaminé que não existe mais". Papai Noel é o quê? Um santo, um lobista do comercio, um espião da NSA? O mundo está muito mudado.
Até quando? Será que no ano 2050 ainda haverá Papai Noel?
Na época do Estado Novo de Getúlio Vargas, nacionalista e fascistoide, alguns malucos lançaram uma campanha no rádio para substituir o Papai Noel por um outro símbolo: o "Vovô Índio" - um velho silvícola seminu, com peninha na cabeça, que traria presentes para os "curumins" de verde e amarelo. Foi um fracasso total, pois o cinema americano já mandava em nossas cabeças, com o Bing Crosby cantando White Christmas sem parar.
Lembro-me que no Natal, durante as ceias, eu via do meu canto de menino melancólico as ligações frágeis entre parentes, entre tios e primos, as antipatias disfarçadas pelos abraços frios e os votos de felicidades. O destino das famílias fica evidente no Natal. Os pobres se conformando com o tosco prazer dos presentes baratos e os ricos querendo provar que serão felizes a qualquer preço. Canalhas e egoístas o ano inteiro, esfalfam-se para viver uma alegria compulsiva entre gargalhadas solidárias, beijos molhados de vinho e uísque, terminando nas tristes saídas na madrugada, com crianças chorando e presentes carregados com tedio por pais de porre, aos berros de "feliz natal".
Eu olhava aquelas famílias viajando no tempo como um cortejo trôpego, eu via a solidão de primos, das tias malucas, dos avós já calados e ausentes, o eterno presunto caramelado, o peru com apito.
Todo mundo reclama do Natal, repararam? "Ah... porque no Natal aumenta o sentimento de culpa, a gente tem de aguentar a família e os traumas infantis, no Natal eu fico triste porque me separei do marido, o Natal é uma festa influenciada pelos americanos, com Papai Noel enchendo o saco em vez de esvaziá-lo, no Natal a gente engorda muito, comendo aquelas rabanadas e panetones, chega de Natal!"
Todo mundo fala essas coisas mas, de noite, olham com ternura as bolinhas douradas da árvore, comem seus pedaços de peru, dizem que "adoraram o presentinho, coisa pouca, não leva a mal, mas essa caixa de sabonetes naturais é legal, adorei a água de colônia, esse CD não é pirata não?"
Eu já tive carnavais felizes, "sãos joões" felizes, mas não me lembro de uma grande "noite feliz, noite de paz".
E fui o primeiro de minha turminha de subúrbio a desconfiar que Papai Noel era uma fraude. "Papai Noel não existe!" - foi meu grito revolucionário. "Existe sim! Ele me deu um velocípede!" - bradavam os meninos obstinados em sua fé. "Ah, é? Então, fica acordado para ver se não é teu pai botando os presentes na árvore!" Mas meus amigos lutavam contra essa desilusão, mais ou menos como velhos comunas não desistem até hoje do paraíso leninista. Recorri a meu avô, conselheiro e aliado, e ele confirmou e apoiou meu agnosticismo natalino: "Não existe não...Você não é mais neném...".
Daí para a frente, não parei mais. Entrei de sola na lenda da cegonha e do bebê que "papai do céu mandou". "Vocês pensam o quê? As mães de vocês ficam nuas e o pai de vocês bota uma coisa dentro da barriga delas pelo umbigo...!" "A minha mãe, não!" - berravam os jovens édipos, partindo para a porrada de rua comigo. Daí para descrer de Deus foi um pulo, para o horror escandalizado dos colegas do colégio jesuíta. "Deus é bom, padre?" "Infinitamente bom..." "Ele sabe de tudo?" "Sim..." - respondiam os padres já desconfiados. "Então, por que ele cria um cara que depois vai para o inferno?" Até hoje ninguém me respondeu isso.
E assim, fui, até começar meu ódio ao "imperialismo norte americano" dos anos 60.
Hoje, vejo que o Natal perdeu aquela delicadeza antiga, com o fim das famílias nucleares. Em vez do saco de presentes, temos as calamidades coloridas dos shopping centers. Em vez da família reunida em torno do peru, vemos pobres e ricos solitários tentando recriar uma noite feliz nem que seja nos botequins e lanchonetes.
E hoje, mesmo com o futuro cada vez mais ralo, confesso que tenho saudades da precariedade de nossa vida antiga, da ingenuidade dos comportamentos, de um mundo com menos gente louca e má. "Ah! Você por acaso quer a volta do atraso?" - dirão alguns. Não. Tenho saudades retrógradas dos tempos analógicos, do ritmo lento do dia a dia, sonho com uma vida delicada que sumiu, dos lugares-comuns, dos chorinhos e chorões, de tudo que era baldio, dos valores toscos da classe média. E quando chega o Natal, mesmo irritado com os "sinos que bimbalham", tenho a grande nostalgia das tristes ceias de minhas tias, sinto ainda o gosto dos "panetones" e rabanadas transcendentais do meu passado.
Hoje, no presépio de Belém, perto da manjedoura onde o menino Jesus recebeu os reis magos, nos lugares sagrados de Jerusalém, explodem os homens-bomba berrando "Feliz Natal, cães infiéis!".
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