FOLHA DE SP - 17/12
A queda do apartheid não começou com a saída de Mandela da prisão, mas com a queda do Muro
1. Com a morte de Mandela, confesso que passei horas e horas a ler sobre o senhor. Mas nenhum texto me impressionou tanto --na sua imbecilidade e ignorância-- como o elogio cético que Slavoj Zizek dedicou a Madiba no "Guardian".
Verdade que Zizek nunca desilude. Mas o texto atinge novos patamares de mendacidade intelectual quando informa o auditório de que Mandela morreu um homem amargo.
Uma afirmação dessas, vinda de um enfermeiro, teria o seu valor. Mas o objetivo de Zizek é político, não clínico: Mandela morreu amargo porque a promessa de uma África do Sul resplandecente não se cumpriu.
Até aqui, nada a dizer: a pobreza, a violência e o crime continuam a fazer parte do cotidiano do país. Mas para Zizek essas falhas devem-se à "traição" que Mandela cometeu sobre os seus ideais "socialistas", sucumbindo às sereias do capitalismo.
Nesse sentido, Mandela representa bem o destino da esquerda contemporânea, diz Zizek: na oposição a um regime iníquo, a esquerda promete maravilhas sem fim; quando chega ao poder, abre a porta ao compromisso "burguês".
A ignorância de Zizek começa logo aqui: ao não entender que o derrube do apartheid começou por um ato de compromisso. Que o mesmo é dizer: Mandela pousaria as armas e o regime começaria a tratá-lo com outra brandura.
Isso pode soar ofensivo para quem vive no jardim infantil da política e divide o mundo entre índios e cowboys. Não soou ofensivo para Mandela nem para a ala mais moderada do ANC.
Mas há mais: acusar Mandela de atraiçoar os seus ideais "socialistas" é ignorar a importância que o fim desses ideais teve para derrubar o próprio regime.
A queda do apartheid, ao contrário do que imagina Zizek, não começou com a saída de Mandela da prisão em 1990. Começou um ano antes, quando um certo Muro de Berlim foi reduzido a escombros. Com o desaparecimento da ameaça ideológica de Moscou, a elite branca não apenas deixou de temer a transição para um regime democrático pleno --como, no limite, o permitiu.
Finalmente, Zizek pergunta: não será possível ir além do legado tímido de Mandela sem cair no extremismo totalitário de Robert Mugabe, o vizinho do Zimbábue que arruinou o seu país?
Curiosamente, Zizek nem se apercebe da contradição da pergunta: Mugabe destruiu o país porque seguiu a cartilha "socialista" que Zizek acusa Mandela de ter renegado.
O resultado desse programa de "coletivização dos meios de produção" determinou que um dos mais prósperos países africanos seja hoje um caso internacional de fome, miséria e, claro, guerra civil larvar de negros contra brancos. Ou, pelo menos, contra os brancos que ainda restam por lá.
Quando será que Zizek cresce e desaparece?
2. A culpa é de John Lennon: quando o ex-Beatle começou a dissertar sobre os grandes temas do mundo, o mundo prestou atenção e a moda estava lançada.
Bizarro: eu gosto da minha empregada doméstica. Mas não presto atenção ao que ela diz sobre, por exemplo, o aquecimento global ou a crise das dívidas soberanas na Europa. Por que motivo devemos prestar atenção ao que dizem os músicos sobre assuntos que eles grotescamente desconhecem?
Roger Waters é um caso recente: o líder do Pink Floyd considerou Israel um Estado perfeitamente comparável à Alemanha nazista. Motivo? A forma como trata os palestinos de Gaza e da Cisjordânia. Roger Waters só não explicou direito se também falava dos campos de extermínio e dos fornos crematórios que existem em Tel Aviv.
Ponto prévio: você, leitor, pode não concordar com a política de Israel; pode condenar vivamente a construção de assentamentos na Cisjordânia; e pode até atribuir todas as culpas do mundo aos judeus pelo fracasso das sucessivas negociações entre Israel e a autoridade palestina. Está no seu direito e na posse razoável das suas faculdades mentais.
Mas quando alguém compara Israel com a Alemanha de Hitler --o mais infame regime da história, que fabricou a morte sistemática de milhões de judeus e outras minorias e foi responsável pela maior catástrofe militar do século 20 --essa comparação não é apenas ofensiva para a "memória das vítimas", como dizem os poetas.
A comparação é ofensiva para você, leitor, tratado como um idiota ignorante por outro idiota ignorante.
Um comentário:
E o sr. ainda se dá ao trabalho de ler o Guardian?
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