REVISTA VEJA
Houve época em que cultores brasileiros da literatura escreviam ensaios como “Balzac e o Brasil”, “Thomas Mann e o Brasil”, “Flaubert e o Brasil”. Iam buscar, nas minudências dos gigantes, momentos em que, quase sempre de raspão, evocavam nossa bela terra tropical. Os proustianos fizeram o mesmo com seu herói. Um deles, Hermenegildo de Sá Cavalcante, fundador da Sociedade Brasileira dos Amigos de Mareei Proust, escreveu um trabalho em que enumera três candidatos ao esculápio de O Caminho de Guermanies. Dois deles, Antônio Felício dos Santos, tão famoso como médico quanto como político, no Império, e o conde de Mota Maia, médico pessoal de dom Pedro II, que partiu com ele para o exílio em Paris, são tidos como os menos prováveis. Sá Cavalcante aposta em Domingos Jaguaribe, cearense radicado em São Paulo, onde há até uma Rua Jaguaribe em sua homenagem. Jaguaribe era um entusiasta das propriedades medicinais das plantas brasileiras e, em 1893, quando tinha 45 anos e Proust 22, passava temporada de aperfeiçoamento no hospital Salpêtrière, de Paris.
Seja quem for, nosso distante compatriota faz má figura, no livro. Ele surge como o “médico brasileiro que pretendia curar as sufocações do gênero das que eu tinha com absurdas inalações de essências de plantas”. A assertiva é avassaladora para os brios nacionais. Não devemos, no entanto, ficar em seu valor de face. Ela nos sugere efeitos ocultos. Se o médico “pretendia”, deduz-se que acabou não aplicando o tratamento sugerido. Mas na continuação escreve Proust que, no afã de fazer o médico "tomar mais cuidado” com ele, apressou-se em dizer-lhe “que conhecia o professor Cottard”. (Importante personagem do livro, Cottard foi inspirado nos médicos franceses mais prestigiosos da época.) Se a preocupação era que tomasse “mais cuidado”, é porque já estava cuidando. Pode ser que os cuidados não tivesse entrado ainda — porque detida a tempo — a tal inalação das plantas. Mas também pode ser que tivesse entrado, e logo sido interrompida.
Da pior hipótese Proust escapou. E se tivesse inalado as plantas e elas fossem venenosas? E se tivesse em consequência contraído insuportáveis dores e tenebrosas febres? E se tivesse morrido? O mundo teria sido privado deste patrimônio da humanidade que é Em Busca do Tempo Perdido — e por culpa de um brasileiro! Se o tratamento não chegou a ser ministrado, temos a hipótese inversa: e se tivesse dado certo? Proust se livraria da asma, e em consequência ganharia um incentivo para jamais renunciar à frivolidade dos salões em que dissipou boa parte da vida. O resultado, igualmente desastroso, é que não teríamos Em Busca do Tempo Perdido. A asma foi em grande pane a responsável pela decisão de trancar-se em casa e sofregamente, por catorze anos seguidos, até a morte, se ter entregue à composição de sua obra imortal. Ou bem o médico brasileiro lhe ministrou um início de tratamento e o fez piorar, ou não fez nada, e a asma seguiu seu curso. Em ambos os casos, contribuiu para que o autor mudasse de vida e fosse cuidar de sua obra. A honra da pátria está salva, também por esse lado.
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