O Estado de S.Paulo - 21/09
De volta às livrarias a melhor obra de ficção brasileira sobre a 2.ª Guerra Mundial. Mina R, de Roberto de Mello e Souza, lançada em 1973 pela editora Duas Cidades e reeditada pela Record 22 anos depois, sai agora pela Ouro Sobre Azul (233 págs., R$44). Relatos jornalísticos, históricos e memorialísticos sobre a participação da Força Expedicionária Brasileira na Itália já temos bastante, romances e contos, quase nada. Mas não é só pela escassez de concorrentes que Mina R se destaca como uma obra notável. Mello e Souza escreveu um belo livro, à altura da epopeia dos pracinhas nos Apeninos. Esqueça A Retirada da Laguna, de Taunay. É outra guerra, outra mirada, outra forma de narrar.
Se no contingente da FEB enviamos algum poeta, ele não se atreveu a versejar sobre a guerra com a mesma pujança de Drummond (sou mais Visão 1944 e O Medo do que Carta a Stalingrado, todos de A Rosa do Povo), Murilo Mendes (Poesia Liberdade) e Cecilia Meireles (Pistoia, Cemitério Militar Brasileiro).
O historiador e teórico marxista Jacob Gorender, ao contrário dos poetas citados, lutou na frente italiana, mas refletiu relativamente pouco sobre o conflito. Clarice Lispector levantou o moral dos pracinhas internados num hospital napolitano, ajudando-os a escrever cartas para parentes, amigos e namoradas, mas não se empenhou em extrair combustível literário dessa experiência.
Roberto de Mello e Souza (1921- 2007) era irmão do prof. Antonio Candido. Deixou vários livros sobre recursos humanos, sua especialidade e ganha-pão, mais três ou quatro volumes de ficção, nenhum com a reputação de Mina R. Foi como cabo especializado em desarmar minas terrestres que embarcou com a FEB para derrotar as forças nazi-fascistas. Em tese, cuidar de explosivos é combater sem ódio e sem remorso, livre do confronto direto com o inimigo. É também uma guerra particular, que se ganha sozinho. E especialmente gratificante quando se consegue derrotar uma bomba tida como impossível de ser desarmada, como a Mina R e suas 12 libras de TNT hermeticamente blindadas.
Sem uma história linear, com idas e vindas no tempo, mudança de vozes e pontos de vista, reminiscências e fluxos da consciência, momentos de alta tensão e intermezzi pitorescos e românticos, seu núcleo é o cotidiano do front e seus "falsos jogos atléticos" (apud Cecilia Meireles), seus desconfortos, sobressaltos, desalentos, suas calamidades e pequenas recompensas: corpos dilacerados por balas, morteiros e bombas, o inferno em carne viva, um cheiro permanente de pólvora e sangue no ar, medo e coragem em cada palmo de neve ("ninguém tinha vergonha de ter medo porque nós sabíamos que coragem não é não ter medo mas ter medo e aguentar a mão"), a camaradagem reconfortante, sem a qual, comenta ainda o narrador, "a gente viraria um animal mesmo, porque aquilo tudo que a gente estava fazendo era um troço muito feio".
A narrativa, próxima do coloquial, flui como a de um Hemingway de sotaque mineiro, com esparsa pontuação e toques rosianos.
O crítico e tradutor Boris Schnaiderman, autor da orelha da reedição de 1995 que a Ouro Sobre Azul acrescentou ao seu apêndice apologético, também integrou o contingente da FEB. Era calculador de tiros e nos premiou, pouco tempo atrás, com outra obra ficcional ambientada nas trincheiras italianas, Guerra em Surdina, editada pela Cosac Naify. Seu batismo de fogo, por sinal, chamou atenção de um bocado de gente, inclusive do correspondente de guerra do Diário Carioca, Rubem Braga.
O Velho Braga, ainda um jovem de 30 anos, foi um dos soldados da notícia que cobriram a campanha da FEB, entre os últimos meses de 1944 e os primeiros do ano seguinte. Acantonados nos frígidos escombros do quartel dos carabinieri de Pistoia, a uns 10 km da frente de batalha, ele, Joel Silveira (cobrindo para os Diários Associados), Raul Brandão (Correio da Manhã), Egydio Squeff (O Globo) e Thassilo Mitke (Agência Nacional) fizeram um trabalho de nível internacional, especialmente Rubem e Joel, dois mestres do jornalismo e da escrita.
Em suas reportagens de guerra, enfeixadas no antológico Com a FEB na Itália (Record), o sabiá da crônica quase não menciona seus confrades, talvez porque levasse demasiado a sério o dogma de que jornalista não é notícia. Numa guerra, é. Joel foi menos dogmático. Apesar de muito mais amigo de Rubem, acabou fazendo do "frágil e ardiloso" Squeff seu mais constante parceiro no ataque à Linha Gótica alemã e, por tabela, um personagem de suas narrativas, reunidas em O Inverno da Guerra (Objetiva).
Era Squeff quem tentava animar a turma quando pela manhã todos saíam do quentinho do saco de dormir (ou cama-rolo, como Rubem preferia chamá-la) para a geladeira apenina. Sempre com o mesmo refrão: "Guerreiros, de pé! À luta!". Invariavelmente acompanhado desta exortação: "Vamos acabar logo com a porcaria dessa guerra que estou doido para voltar ao meu chopinho na Galeria Cruzeiro".
É possível que, na época, muitos tenham preferido a cobertura, com toques rossellinianos, de Rubem. Não entro nessa discussão, mas de uma certeza não abro mão: o último capítulo de O Inverno da Guerra é uma joia jornalística e literária.
A cinco dias do fim oficial do conflito, Joel, já liberado de suas funções, pegou carona no jipe de um sargento, rumo a Milão, e no meio do caminho cruzou com o que restava de um regimento de artilharia alemão. Amarfanhados, barbudos e esfomeados, os retirantes tedescos pareciam almas penadas a caminho do inferno. Um cabo que falava italiano puxou conversa com o jornalista brasileiro. Fora informado de que a guerra terminara, mas nem ele nem seus comandados sabiam ou tinham para onde ir: as cidades de alguns deles haviam sido praticamente varridas do mapa pelas bombas aliadas.
É uma sequência digna dos melhores filmes de guerra, sobretudo pelo desfecho, quando Joel decide que "já era hora de arrumar a trouxa" e tirar a farda que, àquela altura, o fazia sentir-se "como alguém fantasiado de palhaço numa Quarta-feira de Cinzas". Até com um punchline digno de Casablanca Joel nos agraciou.
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