O Estado de S.Paulo - 20/08
Desde que a presidente Dilma Rousseff anunciou que iria importar médicos, estabeleceu-se um tumulto no setor. Na verdade, o número de médicos é menor que o de muitos países geralmente mais desenvolvidos.
Acontece que desde 1996 o número de escolas médicas e, em consequência, o de graduados em Medicina vem crescendo de maneira até excessiva. Naquele ano havia 82 cursos de Medicina, 60% dos quais eram públicos e 40%, privados. A maioria dos privados era ministrada por entidades que não tinham tradição no setor de saúde e, por isso, não possuíam complexo médico-hospitalar e ambulatorial que permitisse o ensino na sua fase clínica. A solução foi utilizar hospitais e ambulatórios do SUS para ministrar seu curso médico, com evidente prejuízo para o ensino.
Os serviços eminentemente assistenciais não são adequados ao ensino. Mal comparando, seria como ensinar a guiar automóvel nas avenidas de grande tráfego. Enquanto se discutia como melhorar a qualidade do ensino, com 11 entidades médicas reunidas no Cinaem para ajudar as escolas a se adequar, fomos atropelados, a partir de 1996, pela criação de mais de 120 cursos, dos quais 70% privados, com os mesmos vícios dos que buscávamos corrigir. De cerca de 9 mil graduandos, passamos a graduar mais de 18 mil médicos por ano.
Neste momento se descobre o que já era sabido: a distribuição de médicos é desigual, deixando parcelas da população até com excesso, enquanto outras não dispõem de nenhum médico. Por que isso, que é fato, ocorre?
O primeiro argumento é que a urbanização em nosso país é recente. A concentração urbana ocorreu nas grandes cidades, em especial nas áreas metropolitanas, e hoje mais de metade da população vive em apenas 3% dos 5.564 municípios. Não foi possível, em tão curto intervalo de tempo, dotar essas cidades de todos os determinantes sociais de saúde, como saneamento básico, transporte, segurança, educação e também os equipamentos de saúde de que a população necessita. Por outro lado, mais da metade dos municípios tem menos de 10 mil habitantes, igualmente com deficiências comparáveis às das populações periféricas das grandes cidades. A consequência do desenvolvimento urbano equivocado é que onde vivem grandes parcelas da população os profissionais de que ela necessita não aceitam morar.
Outro argumento é que o médico formado atualmente não está sendo preparado para atender a população. Todos concordam com a necessidade da residência médica, mas, como está estruturada hoje, ela resulta, ao final, na formação de especialistas. Só existe residência em hospitais públicos, ou privados, onde está instalada toda a moderna tecnologia. E é exatamente a existência dessa tecnologia que dificulta a formação do chamado médico geral ou generalista. Este deve ser capaz de resolver 80% dos casos e encaminhar para atendimento especializado os 20% que eventualmente precisem de internação.
Aí é que as coisas se complicam. O médico generalista não tem para quem encaminhar o cliente do SUS.
Para as populações de pequenos municípios a proposta seria a organização de consórcios intermunicipais, tendo como sede um município polo. É comum, em municípios com menos de 20 mil habitantes, a existência de hospitais praticamente vazios. Em muitos desses locais, nem mesmo partos são realizados.
A estratégia implantada em 1995 foi o Programa Saúde da Família (PSF), com base no agente comunitário. Este deve obrigatoriamente residir na microárea onde vive a população a que serve, constituída por 100 a 200 famílias, dependendo da concentração. Os agentes - na maioria, mulheres - cadastram a população, que passam a visitar a cada mês. Dessa forma, todas as doenças existentes, como hipertensão, diabetes, tuberculose, passam a ser controladas, o mesmo ocorrendo com as gestantes e a caderneta de vacinação. Para cada cinco ou seis agentes se põe num posto pelo menos um médico, uma enfermeira, uma auxiliar de enfermagem e um dentista. Para complementar o modelo equipes de ao menos 12 especialistas, com acesso a tecnologia e estrutura hospitalar, deveriam dar cobertura à varias equipes do PSF. Sua quase total ausência limita e desestimula a atuação dos médicos de família.
Entretanto, para que essa estrutura funcione teríamos de reformar o ensino médico. Essa reforma significa entregar a graduação a professores que não queiram ensinar especialidades, mas, de cada especialidade, o que nenhum médico pode deixar de saber, seja em situações eletivas, seja, principalmente, nas situações de emergência.
Essa estratégia estava em início de discussão e precisaria de amplo debate com as escolas, as entidades e os alunos. Subitamente foi imposta por medida provisória, o que acarretou rejeição pela classe médica, pelos alunos e por todas as entidades do setor.
Temos hoje perto de 30 mil equipes de Saúde da Família e cerca de 200 mil agentes comunitários. Precisamos do dobro. E não temos equipes de especialistas em condições de receber referência e fazer a contrarreferência, bem como os hospitais relacionados com as equipes.
Decidiu-se importar médicos. Parece-nos que o governo, na pressa de atender deficiências que são reais, tenha posto a perder um esquema que poderia tomar tempo, mas teria tudo para reformar o ensino médico e organizar o atendimento. É urgente que o governo reveja suas propostas e acione os mecanismos dos Ministérios da Saúde e da Educação para que propostas realmente estruturantes e duradouras sejam desencadeadas. É necessário que as entidades representativas dos profissionais da saúde e do sistema educacional façam uma análise crítica da situação atual, com uma visão fundamentada na real necessidade de toda a população.
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