ESTADÃO - 19/07
Quando os acontecimentos de junho sacudiram o Brasil, eu estava iniciando um texto com o objetivo de sintetizar três dias de um seminário realizado pelo PPS em Brasília: A Esquerda Democrática Pensa o Brasil. Suspendi momentaneamente esse texto. Era preciso examinar com calma quais ideias sobreviveram àqueles eventos no País.
Nesse ínterim, chegou às minhas mãos o pequeno livro de T. J. Clark Por uma Esquerda sem Futuro. É um texto voltado para a esquerda europeia. No prefácio para a edição brasileira, o ensaísta britânico menciona o governo Lula, mas elegantemente se esquiva de entrar em detalhes ou submeter nossa situação ao crivo de seus argumentos.
Uma de suas ideias, entre várias outras, me pareceu muito interessante para estimular o texto em preparação sintetizando o seminário. É precisamente a ideia central: uma esquerda sem futuro. T. J. Clark não se refere a ela como força em via de desaparecer. O "sem futuro" significa abrir mão de ter um script para a História, de prometer amanhãs que cantam paraísos na Terra e mergulhar no presente, aceitando até mesmo quem não tem pretensões de encarnar uma vanguarda.
O objetivo deveria ser apenas reunir material para uma sociedade, expressão que Clark utiliza para contrapor a uma frase de Friedrich Nietzsche em que o filósofo alemão afirma que perdemos as condições de matéria-prima para uma sociedade. Clark, certamente, não autorizaria algumas das relações de suas teses com o Brasil. Mas o que fazer? Leitores são imprevisíveis.
Quando reforça a ideia de um mergulho no presente, Clark afirma que a esquerda deve deixar de ser épica. Imediatamente me veio à cabeça o bordão "nunca antes nesse país...". Nada mais épico do que supor o início de uma nova fase histórica, o que, no fundo, significa afirmar que o futuro radiante já começou. Pelo menos essa dose de humildade deveria estar presente nas teses de uma esquerda democrática pensando o Brasil.
O mês de junho envelheceu rapidamente os partidos, como se as câmeras os fotografassem usando o efeito sépia para transmitir a atmosfera de passado que os envolve. Mas esse é apenas um dos grandes problemas com que se defronta uma esquerda democrática, que defino, de forma superabreviada, como uma força que se recusa a aceitar a tese de que os fins justificam os meios.
O longo domínio do PT e seus aliados entrou em crise profunda quando a fantasia de um mundo quase perfeito caiu por terra. Abriu-se com a queda da grande ilusão a possibilidade de buscar uma alternativa de poder em 2014, e não mais em 2018, como sugeria o andar da carruagem.
Em 2014, possivelmente o País ainda viverá os efeitos de uma crise provocada, de um lado, pelas dificuldades internacionais e, de outro, pelas conclusões errôneas que o PT extraiu dela. Não me refiro apenas ao dínamo quase exclusivo do consumo, mas também à suposição de que os fracassos do mercado só seriam recompensados por uma revitalização da presença do Estado na economia.
Como consequência, um novo governo no Brasil teria de enfrentar simultaneamente políticas de austeridade, uma sociedade cada vez mais consciente de seus direitos e, é claro, o PT na oposição. A margem de manobra visível é enxugar a máquina estatal, racionalizá-la, liberando com isso recursos vitais para investir nos serviços públicos.
A entrada do governo no mundo digital poderia contribuir para o enxugamento da máquina. Mas ela oferece mais que isso: a possibilidade de se conectar com a sociedade, enriquecer com a inteligência coletiva.
Destaco ainda uma terceira dimensão, mais rigorosa, do mergulho no presente: lidar com sua volatilidade. Zigmunt Bauman usa uma imagem interessante em seu livro Sobre Educação e Juventude. Diz o sociólogo polonês que nos dias de hoje estão ultrapassados os mísseis que apontavam para um alvo, calculavam a trajetória, o volume de pólvora e seguiam o rumo preconcebido. Nos tempos atuais, os mísseis são inteligentes e capazes de mudar sua rota diante de alvos em constante movimento.
Para ficar nos exemplos bélicos, é difícil entrar nessa guerra com uma pesada armadura ideológica. A política externa do PT, por exemplo, foi equivocada não apenas por substituir a visão nacional pela partidária, mas também porque a visão partidária era mais estreita.
Foi correto investir na integração latino-americana. Compreensível, pelo viés ideológico, um entusiasmo inicial com a o bolivarianismo. No entanto, atrelar o Brasil a esse pedaço do mundo e perder inúmeras oportunidades de acordos e intercâmbio com grandes centros científicos e tecnológicos não foi inteligente, no sentido de que o míssil seguiu apontando para um alvo que não estava mais ali.
O Brasil assinou somente três acordos bilaterais: com a Palestina, Israel e o Egito. Enquanto isso, o mundo fervilhava de novos acordos, mais de 500, segundo o embaixador Rubens Barbosa.
Um novo governo terá, portanto, de lidar com a crise econômica e com o atraso na política externa, num universo político em desintegração. Eleições costumam ser uma dose de legitimidade. Mas até que ponto a distância que se criou entre o mundo político e sociedade pode ser reduzida em tão pouco tempo?
Na Espanha, o movimento dos "indignados" ampliou o número de votos em branco e nulos. Nesse caso, as eleições aprofundaram a crise de legitimidade.
Voltarei muitas vezes ao tema. É que tinha escrito um artigo sobre Sérgio Cabral. O artigo começava assim: Não deveria escrever sobre Sérgio Cabral. Meu caro editor me ligou e disse: "Gostei muito da primeira frase de seu artigo". Respondi: eu também, pode deixar que envio outro ainda hoje.
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