O GLOBO - 18/07
O Exército é a espinha dorsal do Estado egípcio. Os oficiais do grupo de Gamal Abdel Nasser derrubaram a monarquia, em 1952, consolidando a independência, e governaram o país durante seis décadas, moldando uma elite dirigente. A revolução em curso no Egito é obscurecida, distorcida e desviada pelas interferências do Exército, que procura estabelecer-se como uma espécie de Poder Moderador numa democracia limitada. Mesmo assim, não é correto descrever a derrubada de Mohamed Mursi como um golpe militar. O presidente islâmico caiu sob o impacto de um levante popular que representa, de muitas formas, a continuidade do levante da Praça Tahrir de 2011 contra a ditadura de Hosni Mubarak.
Nomes têm importância. O golpe militar antimonárquico de Nasser foi batizado com o nome de Revolução Nacional. Mursi não era um ditador, mas um presidente eleito em meio à turbulenta transição revolucionária. A Irmandade Muçulmana classifica a sua remoção, por ordem do general Abdel Fatah al-Sisi, como um golpe de Estado. As multidões incontáveis de egípcios que fizeram a “segunda Tahrir” têm opinião bem diferente.
“Sisi seguia a vontade do povo”, disse um manifestante ao repórter do jornal “Guardian”, sintetizando uma narrativa possível sobre a nova revolução no núcleo político do mundo árabe. O cenário é mais complexo do que isso, como atesta a vasta adesão às manifestações convocadas pela Irmandade Muçulmana para exigir a restauração de Mursi. Contudo, atrás da óbvia divisão política entre os egípcios, evidencia-se que a Primavera Árabe não se encerrou pela substituição de tiranias militares por tiranias religiosas. Pelo contrário, e para surpresa de tantos comentaristas ocidentais, ela prossegue desafiando o fundamentalismo islâmico.
Fundada em 1928, a Irmandade Muçulmana é uma instituição tão importante quanto o Exército na sociedade egípcia. Ao longo das décadas de autoritarismo militar, ela foi proscrita e perseguida, mas deitou raízes na mesquita, na universidade, em amplos setores das classes médias e, sobretudo, entre os pobres. A Irmandade é, além disso, a nascente principal do moderno fundamentalismo islâmico em todo o mundo árabe, inspirando organizações similares que operam na Tunísia, na Argélia, na Síria e na Palestina. De uma de suas costelas, nasceu na década de 1960 a corrente radical que, na estufa ideológica da Arábia Saudita, geraria o jihadismo contemporâneo. Depois daquela cisão, a organização egípcia renunciou à violência e, convencendo-se de que o tempo era seu aliado, decidiu percorrer o longo caminho da persuasão.
A aposta na moderação rendeu frutos após o levante contra Mubarak. A Irmandade aderiu tardia e relutantemente à “primeira Tahrir”, mas se beneficiou da desorganização das correntes laicas, tanto as liberais quanto as socialistas, na hora das eleições. Na moldura de um sistema eleitoral confuso, arranjado às pressas, a revolução popular caiu no colo da única organização política implantada em todo o país. A maioria dos eleitores não votou pela instalação de um Estado islâmico, algo ausente da plataforma eleitoral da Irmandade. O governo de Mursi, contudo, interpretou erradamente a mensagem das urnas — e o próprio sentido da democracia.
Mursi fracassou porque se recusou a enfrentar a ala tradicionalista de seu movimento e a erguer pontes na direção das correntes laicas. A Irmandade imaginou a democracia do voto como uma ferramenta para a reinvenção da sociedade egípcia segundo as linhas de sua própria doutrina. A “segunda Tahrir” esclareceu as coisas: a diversidade política e cultural do Egito não cabe na caixa apertada do fundamentalismo islâmico. A nova revolução egípcia, precipitada pela onda de manifestações antifundamentalistas da Praça Taksim, na Turquia, assinala a reversão de uma tendência. O Islã político encontra-se, agora, na defensiva.
Não é apenas o futuro do Egito que está na balança. A “segunda Tahrir” acendeu um facho intenso de luz sobre a questão da compatibilidade histórica entre o Islã e a democracia. Se a Irmandade extrair a lição completa da dura derrota, terá a oportunidade de reformar-se a si mesma, desistindo de esconder seus erros atrás de fantasmagóricas conspirações ocidentais, abandonando os resquícios da linguagem da jihad e aprendendo as virtudes da separação entre política e religião. Nessa hipótese benigna, a Primavera Árabe realizaria as esperanças que suscitou e o mundo árabe encontraria um caminho para escapar ao círculo de ferro da intolerância e do fanatismo.
Nem tudo, porém, depende da Irmandade. A prisão de Mursi, as perseguições contra outros líderes islâmicos e o massacre de manifestantes que pediam a restauração do presidente deposto são nítidas provocações da cúpula militar. Na direção oposta à dos chefes militares da Tunísia, a cúpula do Exército egípcio não admite a hipótese da retirada para os quartéis. O antigo poder almeja empurrar a Irmandade para a clandestinidade e, mais além, para a via desastrosa do terrorismo. Nessa hipótese, um inverno melancólico congelaria a Primavera Árabe.
“Transitar do fascismo religioso para o fascismo militar não é algo que mereça celebração”, disse Mariam Kollos, uma ativista de direitos humanos que participou ativamente dos levantes contra Mubarak e Mursi. O termo “fascismo” pode não ser apropriado, mas o que vale é o sentido da sentença. A “segunda Tahrir” revela tanto a vitalidade da revolução democrática no Egito quanto o fracasso dos profetas que condenaram de antemão a Primavera Árabe como uma queda no precipício do fundamentalismo islâmico. Em pouco mais de dois anos, os egípcios derrubaram uma ditadura militar e um governo eleito que pretendia aprisionar as liberdades no calabouço da ortodoxia religiosa. Depois disso, a tese do “choque de civilizações” deveria ser recolhida ao museu das relíquias ideológicas.
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