FOLHA DE SP - 13/06
Sobre turismo sexual, uma prostituta me disse: 'Hotel ganha dinheiro com turismo, bar, garçom. E eu não posso?'
Há alguns anos fui assistir no festival de cinema do Rio o documentário "Mulheres Sem Piedade", do diretor alemão Lukas Roegler, que conta a história de nigerianas forçadas a se prostituir na Europa.
De distintivo, há a constatação de que a rede mafiosa é chefiada por mulheres e a forma de coerção: um pacto de sangue feito ainda na Nigéria entre as mulheres traficadas e um mestre de vodu.
O filme foi bom ao mostrar como uma crença pode moldar as atitudes humanas e que é possível romper com isso. Mas o melhor veio no debate após a sessão.
Após a exposição do diretor, foi a vez de Gabriela Leite, puta e ativista política, que destacou a dificuldade de compreensão acerca da prostituição, expressa, por exemplo, no combate ao turismo sexual, dizendo algo como: "Se hotel ganha dinheiro com turismo, botequim, garçom e tanta mais gente ganham dinheiro com o turismo, por que puta não pode fazer o mesmo?".
Da plateia, houve a fala de um antropólogo --holandês, creio--, destacando que entre as pessoas que conhece e com quem faz sua pesquisa sobre prostituição em Copacabana, seria possível encontrar cinco que foram vítimas de tráfico humano para fazer um filme parecido ao que tinha sido apresentado pouco antes.
Entretanto, por mais terrível que isso seja, não discute o mais importante: a prostituição é predominantemente uma atividade livre e feita por pessoas adultas.
Não tenho restrição moral contra a prostituição, pois adultos devem poder decidir livremente em que condições querem fazer sexo. Mas a situação de pobreza que força mulheres a se prostituírem me fazia vê-las apenas como vítimas. Esse debate mudou minha opinião: é preciso regulamentar o exercício da profissão.
Afinal, ela é um jeito legítimo de buscar uma atividade mais rentável e autônoma. Mas mantê-la no gueto, submetida à violência da polícia --no Brasil, prostituição não é crime, mas é possível enquadrá-la como ato obsceno ou atentado ao pudor-- ou de seus "protetores", prejudica demais a vida desses profissionais.
O regramento, como usual quando o Estado intervém nas vidas privadas, deve ser parcimonioso: é razoável, por exemplo, exigir exames médicos regulares e definir espaços nas ruas para a prática do "trottoir".
Claro, a prostituição infantil e o tráfico humano devem continuar sendo um crime grave. Porém, é preciso legalizar o agenciamento e os bordéis. Não há razão para proibir práticas comuns de mercado, como a intermediação comercial e a provisão de infraestrutura para um serviço, se elas são feitas livremente.
Não é fácil garantir uma liberdade individual se a maioria é contra, em especial quando há grupos politicamente ativos, como os religiosos. Esse é um conflito intrínseco à democracia, mas é preciso achar um jeito de priorizar os direitos civis.
Nesse sentido, foi alvissareiro ver o médico infectologista Dirceu Greco, ex-diretor do departamento de DST do Ministério da Saúde, no programa "Entre Aspas", da Globonews.
Greco foi sereno ao dizer que é uma vitória ter trazido a discussão à tona, mesmo isso tendo levado à sua demissão. Além disso, se contrapôs ao conservadorismo, que não se limita aos grupos religiosos, mas em alguma medida também existe em parte do movimento feminista.
Presente no mesmo programa, a socióloga e especialista em gênero Rosana Schwartz mostrou certo desconforto com a frase da campanha que detonou a polêmica --"eu sou feliz sendo prostituta"--, alegando que suas pesquisas apontam que apenas 5% ou 6% delas seriam felizes com sua profissão.
Rosana prefere que tivesse sido usada outra frase, que enfatizasse a necessidade de se proteger.
Greco lembrou que as frases da campanha são de prostitutas e que havia mais de uma sobre a proteção, como: "Eu não posso ficar sem a camisinha, meu amor".
Ele também destacou que a felicidade não está (necessariamente, acrescento eu) na profissão em si, mas em poder ser feliz, mesmo ganhando a vida de um jeito difícil, como em muitas outras profissões.
Ninguém precisa gostar da prostituição, mas o mundo fica melhor se tentamos entender as razões alheias. Nesse sentido, sugiro a leitura do livro de Gabriela Leite "Filha, Mãe, Avó e Puta".
Um comentário:
Excelente artigo. Só faço uma correção. Uma puta dizer que é feliz, OK. O problema é uma mensagem DO GOVERNO dando um aval moral à prática. Mais grave ainda, o anúncio passa quase a impressão que a puta é feliz PORQUE puta. Ora, ninguém, ou quase, quer seus filhos se prostituindo. Gastar o dinheiro público para na prática incentivar tal tipo de atividade parece realmente fora de propósito. Acho que a Bruna surfistinha já faz isso sem precisar gastar nosso dinheiro.
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