REVISTA VEJA
Eram três mulheres de uns 50 anos, simples, robustas, cansadas e suadas, esperando ônibus no Rio havia mais de uma hora. Calor, desconforto. A van que costumavam usar a caminho de seu emprego fora desativada com outras. Problema nas vans? Em vez de corrigir, a gente suspende tudo. O povo que se vire.
Mas não conseguiam se virar as três senhoras cansadas. Finalmente um ônibus para; por uma raríssima exceção, não está lotado. Deve ter passado a hora do pico. As três entram, depois aparecem em janelas acenando para a câmera da TV com a folha de papel com que se abanavam na rua. Felizes, lustrosas, risonhas: conseguiram um lugar para sentar, coisa mais difícil do que cair dinheiro do céu. Nós somos essas pessoas que ficam felizes por poder se sentar em mais uma longa, quente, infernal viagem até seu trabalho — aonde chegariam atrasadas, com desconto, xingação, qualquer coisa. Mas estamos acostumados.
A gente abre o jornal de manhã e liga a televisão: notícias, apesar de seguidamente prometermos a nós mesmos não envenenar mais a alma ao começar o dia com o atroz desfile de barbaridades econômicas, policiais ou éticas. O que penso que seja burrice nossa, mas ninguém é perfeito. As novidades são violentas: um dos monstros assassinos que queimaram viva uma dentista de classe média, que sustentava pais velhos e irmã deficiente trabalhando num consultório no fundo da casa, confessou o ato e é menor de idade. Vai passar um tempinho numa casa socioeducativa? No âmbito da educação, mais espanto: as universidades não precisam mais exigir título de mestrado ou doutorado para seus professores. A desculpa é que profissionais brilhantes conseguem ensinar sem esse título. Minha sugestão seria, em lugar de baixar ainda mais o nível, nesses casos raríssimos apelar para o “notório saber”... Mas receio que o autor dessa maravilha ignore o que é isso.
Nestes mesmos dias, anunciou-se outra dessas propostas que pululam feito moscas na carniça: o Supremo não seria mais supremo, mas submetido em várias coisas à análise e aprovação do Congresso. Liguei para meus filhos, como costumo fazer: “Está começando o fim da nossa democracia”. Será o fascismo se instalando, a Justiça nas mãos de deputados e senadores nem sempre votados — tem gente que ocupa o lugar como suplente, sem um voto que seja. Vários deles, aliás, réus condenados, mas que por um desses nossos absurdos continuam na tribuna, votando, dando ordens, quando deviam estar recolhidos.
Moradias populares, concedidas a gente de baixa renda, o sonho de uma vida, muitas nem habitadas, já desmoronam. A caixa-d’água caiu em cima da cama em uma delas, mas ninguém morreu. Que alegria. Edifícios erguidos onde desmoronou o malfadado Morro do Bumba, desgraça mais do que anunciada, inabitáveis, agora demolidos e reconstruídos — nós, o povo, pagamos, como sempre. O dinheiro que ali devia ter sido aplicado escorregou para bolsos alheios como em tantos projetos que, com boa gestão, seriam positivos.
Manifestantes vários causam estragos sérios em edifícios públicos; o conserto pagamos nós, o povo. Eles quase sempre ficam impunes. Mas, se eu destruísse o bem público, certamente não estaria livre para aqui escrever. Aliás, de onde vêm essas multidões que não estão na fábrica, no escritório, na escola ou na enxada?
Enquanto escrevo esta coluna, parece que a nova proposta de reduzir o nível já inferior do nosso ensino superior será arquivada: resta-nos alguma lucidez. O plano de amordaçar a imprensa anda quieto, mas voltará a rosnar. E o projeto de castrar o Supremo, o último reduto de moralidade e respeito, também será engavetado: continuamos uma democracia. Bom se com ele engavetassem a mentira, a roubalheira, a impunidade, a insegurança. Eis a nossa perplexidade: o que vão querer nos impingir, mas esconder por breve tempo, se a gente reclamar mais alto? As três mulheres sentadas no ônibus representam um instante de alívio. Breve trégua, até a próxima tentativa.
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