O Estado de S.Paulo - 12/05
Não confundam algoritmia com algorritmia. Algoritmia é a parte da matemática que tem por objeto os números, berço da palavra algoritmo, com a qual topamos a torto e a direito desde que a informática entrou em nossas vidas. Algorritmia é um neologismo de minha lavra, que está para o algoritmo como a arritmia para os batimentos cardíacos. Não é boa coisa, como boa coisa não é toda e qualquer anormalidade. Vivemos a era da algorritmia, com uma intrusão anormal de algoritmos em tudo que consumimos e fazemos - ou devemos fazer e consumir.
É por meio de algoritmos (conjuntos de regras e operações próprias para realizar certas tarefas) que os sites de busca na internet hierarquizam suas informações, as locadoras online estimam quais os gêneros de filme de nossa preferência com base em escolhas anteriores, as livrarias virtuais selecionam os lançamentos que mais se afinam com nosso gosto literário e as rádios digitais preparam programações musicais personalizadas. É uma mão na roda. Mas, às vezes, uma roda na mão.
Sem algoritmos, o Google, a Netflix, a Amazon e a Pandora Radio seriam inviáveis, as campanhas políticas e publicitárias perderiam um tempo precioso para atingir seus eleitores em potencial e somente o instinto, a imaginação e o livre-arbítrio guiariam nossas escolhas e decisões.
Já existe arte criada a partir de algoritmos (destaque para Scott Draves e a dupla de algoristas Jean-Pierre Hebert e Roman Verostko - ilustrem-se a respeito no Google) e até pesquisas em andamento para que, num futuro assustadoramente próximo, jornais e revistas sejam escritos por e não apenas em computadores, com o inevitável préstimo de algoritmos. Noticiários experimentais, montados eletronicamente a partir de um conjunto de dados recolhidos na internet, há muito deixaram de ser uma utopia. Ou uma distopia, para quem ganha a vida catando, cruzando e divulgando informações.
"Daqui a 15 anos, 90% dos textos da imprensa serão escritos por computadores", prevê Kristian Hammond, coveiro do jornalismo humanamente gerado e fundador da Narrative Science, a empresa que mais avançou na tecnologia que promete condenar todos nós, jornalistas, à obsolescência. Textos de fôlego curto e linguagem padronizada não seriam um bit de sete cabeças para o jornalismo automatizado, mas custa crer que algum programa de computador, ainda que com o mesmo grau de sofisticação do Cray Blitz, do Deep Blue e outras máquinas de jogar xadrez, seja capaz de gerar algo sequer remotamente comparável a um perfil da New Yorker ou a uma crônica do Verissimo.
A mais nova beneficiária (ou vítima) da algorritmia é a indústria de filmes. Por enquanto, só a de Hollywood. Mexeu com muita gente uma reportagem de Brook Barnes, publicada no New York Times de domingo passado, sobre a crescente utilização de dados estatísticos na confecção de roteiros bancados por algumas produtoras de primeira e segunda linha. Mark Twain, para quem havia três tipos de mentira: a mentirinha, a mentira grande e as estatísticas, teria ficado particularmente horrorizado com as revelações da reportagem.
Funciona assim: municiados de informações sobre sucessos comerciais recentes, padrões de gosto, tendências do mercado e variáveis que tais, processadas num computador, roteiristas se viram para equacionar scripts potencialmente tiro e queda na bilheteria. Que se danem as veleidades criativas, a integridade artística e os escrúpulos da originalidade; fazer dinheiro (leia-se: diminuir o prejuízo e maximizar o lucro), e não arte, sempre foi a prioridade da dispendiosa e esquizofrênica artindústria cinematográfica.
Até bem pouco tempo, os produtores limitavam-se a apelar para consultores (script doctors, no jargão local), cujas sugestões podiam ou não ser incorporadas ao problemático roteiro a ser filmado. Prevalecia então o know-how de profissionais tarimbados e de comprovado talento, não a fria palpitaria estatística. Incontáveis projetos foram salvos pela mãozinha, geralmente mantida no anonimato, de luminares como Ben Hecht, o iniciador da espécie, Robert Towne, Francis Ford Coppola, Aaron Sorkin, o dramaturgo Tom Stoppard.
Esses doutores ainda existem, mas parecem condenados à extinção por um avatar eletrônico, o superprocessador de dados desenvolvido por um professor de estatísticas de 39 anos chamado Vinny Bruzzese. Apelidado de "cientista louco de Hollywood", Bruzzese vasculha, com sua equipe, as preferências de grupos de mais 1.500 espectadores (o que mais lhes agrada? Que mudanças fariam na história?), algoritmizam tudo e vendem o peixe a quem contratar os serviços de sua empresa de consultoria, o Worldwide Motion Picture Group, a um preço (US$ 20 mil) demasiado irrisório para ser levado a sério.
Pelo menos um arrasa-quarteirão, Oz: Mágico e Poderoso, já teve seu primeiro tratamento submetido ao vodu estatístico de Bruzzese. A julgar por uma de suas recomendações (filmes com cenas de boliche não dão certo) e tendo em vista o sucesso alcançado por vários filmes com cenas de boliche (Scarface, O Professor Aloprado, O Franco-Atirador, Desde que Partiste, O Grande Lebowski e Sangue Negro), quanto menos o levarem a sério, melhor. Por seus parâmetros, Guerra nas Estrelas não teria sido produzido (a ficção científica estava em baixa na década de 1970) nem O Poderoso Chefão saído do papel (dramas sobre gângsteres perderam seu poder de sedução no pós-guerra).
Os grandes estúdios de Hollywood já se orientaram pelas observações colhidas em cartões distribuídos entre os espectadores reunidos ao acaso numa sessão privée, semanas antes do lançamento do filme, a tempo de impor-lhe ajustes e modificações que o tornassem mais palatável ao grande público. Fazer concessões a priori, submetendo sua célula mater, o roteiro, a uma formatação formulaica e esquemática não chega a ser uma novidade no cinema americano. O dado novo é seu upgrade científico. O engodo agora é computadorizado. Sem que outras modalidades de interferência, totalmente analógicas, tenham sido aposentadas. Conforme se soube essa semana, a CIA não gastou um byte para manipular o roteiro de A Hora Mais Escura.
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