O ESTADÃO - 24/04
A presidente Dilma Rousseff não compreendeu a evidência que emergiu das urnas venezuelanas na última eleição presidencial. A Venezuela é - sempre foi - um país dividido ao meio. Nos últimos anos, o carisma de Hugo Chávez, apoiado numa capacidade de comunicação e numa loquacidade similares às do compadre dele e padrinho dela Luiz Inácio Lula da Silva, fez a balança pesar mais para o seu lado. Mas sua morte restaurou o equilíbrio de antanho e de nada adiantaram os truques continuístas incorporados às instituições políticas e eleitorais do país pelo comandante bolivariano para evitar que a calamitosa situação econômica se refletisse nas urnas.
A pequena margem da maioria de Nicolás Maduro sobre Henrique Capriles e o fato de ela contrariar o resultado de pesquisas de boca de urna não caracterizam, por si sós, ter a contagem de votos sido fraudada. Mas também não faltaram evidências de uso abusivo da máquina pública em favor do presidente reeleito. Só o fato de ter ele feito propaganda partidária à véspera do pleito na televisão pública evidencia a quebra de um conceito elementar de uma disputa eleitoral numa democracia digna dessa denominação: a igualdade de oportunidades para quem dispute a preferência do eleitor.
Não dá para questionar a legitimidade da escolha de Dilma para presidir o Brasil. Mas a lisura dos resultados eleitorais brasileiros, que nunca foi posta seriamente em dúvida, não a autoriza a apoiar, em nome da Nação toda, nenhum dos lados numa eleição sobre a qual paire alguma dúvida. Até porque a votação foi parelha demais e a evidência dessa igualdade exige um mínimo de respeito democrático a quem optou pela substituição do escolhido por Chávez por um oposicionista. Dilma não é presidente apenas de quem a sufragou. Vigendo neste país uma democracia de fato, e ninguém tem o direito de duvidar disso, ela governa em nome de todos. Só que não deveria usar esse peso para ajudar um amigo ou parceiro de crença ideológica.
Ainda mais quando o amigo e companheiro apoiado levou a ferro e fogo até a última faísca a convicção que ela mesma já expressou, em plena campanha antecipada para continuar no poder, de que é lícito "fazer o diabo" para ganhar uma eleição. Felizmente, o Brasil não é a Venezuela. As instituições de nosso Estado Democrático de Direito não permitem a licenciosidade de que os bolivarianos lançaram e lançam mão no país vizinho para controlar Judiciário e Legislativo como se fossem não Poderes autônomos, mas instâncias subordinadas aos mandatários do Executivo. E, Dilma seja louvada, a livre comunicação nestas plagas impede que nossos governantes transgridam as leis.
Convém, no entanto, que as forças vivas da sociedade brasileira atentem para manobras, nem sempre muito sutis, às quais a aliança que sustenta o governo federal, com fome e força de leão, apela para não largar o osso suculento das presas da caçada institucional. Tudo tem sido feito no atual governo para assegurar à sua chefe a vitória - e sem ter de disputar segundo turno - no pleito federal do ano que vem. Diante da perspectiva de retirada do aliado histórico Eduardo Campos, presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e governador de Pernambuco, a chefe do governo tratou de ampliar sua base de sustentação atraindo para o palanque o Partido Social Democrático (PSD), do ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab. E de manter a sociedade com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), com direito ao bis de vice.
Para evitar deserções ela tratou ainda de jogar no lixo as abandonadas intenções de sanear a Esplanada dos Ministérios, trazendo de volta para lá os maiorais do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e do Partido da República (PR), que haviam sido defenestrados em nome da decência cívica e da probidade administrativa.
E da mesma forma que abre mão de nobres princípios assumidos como bandeira no início de seu governo, Dilma Rousseff também recorre ao pretexto de uma providência necessária para reduzir o déficit de representatividade na democracia nacional apenas para atender ao mais deslavado oportunismo. Com a mesma desfaçatez com que cria ministérios para abrigar o maior número de partidos na base governista, a presidente levou a Câmara dos Deputados a aprovar a toque de caixa novas regras para impedir que ex-aliados e eventuais adversários no futuro inflem seus palanques. A lei aprovada na Câmara e encaminhada ao Senado modificando os critérios de distribuição das verbas do Fundo Partidário e dos segundos no horário da propaganda partidária no rádio e na televisão é a mais deslavada prova de acerto da filosofia avoenga segundo a qual "de boas intenções o inferno está cheio". Prova-o o emprego de dois pesos e duas medidas no tratamento de sombra e água fresca dado ao futuro aliado Kassab, oposto à dieta de pão e água a que submeterá os ex-companheiros de jornada Eduardo Campos e Marina Silva. Com direito ao cínico comentário do ministro-chefe da Secretaria da Presidência, Gilberto Carvalho, que atrelou o expediente malandro de desfalcar desde já adversários prováveis de daqui a 18 meses ao preceito democrático da fidelidade partidária, corretíssima demonstração de respeito à soberana vontade da cidadania.
Ainda que o presidente do PSDB de Minas, deputado Marcus Pestana, exagere ao comparar a iniciativa de Dilma ao "pacote de abril", que garantiu à ditadura militar a vitória eleitoral em 1977, mas não lhe assegurou a sobrevivência, o casuísmo continuísta excede em cuidados. Como a reeleição da presidente é muito provável, mesmo que só ocorra no segundo turno, essa pressa toda na corrida de sede ao pote deixa no ar um preocupante desapreço à igualdade de oportunidades, sem a qual a democracia é uma falsa ilusão enganosa e injusta.
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