segunda-feira, janeiro 07, 2013

O que querem as Odetes - JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS

O GLOBO - 07/01


Uma é Odetinha, a menina-santa enterrada no São João Batista, a outra é Odete, a dona de casa que quer ser chamada de ‘cachorra’, sucesso de humor no YouTube

Uma é Odetinha, a menina-santa enterrada no cemitério São João Batista, a outra é simplesmente Odete desde a pia batismal, mas quer ser chamada de putinha no grande altar da cama. É a estrela mais fulgurante dos novos vídeos de humor que, saídos do Rio, estão tomando conta da internet.

Odetinha, a menina rica da Zona Sul que dava tudo aos pobres, vai ser encaminhada para a canonização quando o Papa puser os pés no Rio em julho, num cortejo previsto para mais de dois milhões de visitantes estrangeiros. Odete, a que está sentada à frente do marido no esquete “Sobre a mesa”, no YouTube, quer ser tratada como uma cachorra, possuída por toda a seleção da Nigéria, e, um século depois de lançada por Freud, responde sem papas na língua o célebre psicanalismo sobre o que querem as mulheres modernas.

Uma é Odetinha, a outra é Odete, um nome que desde Odete Lara nunca mais batizou qualquer garota entre Leblon e Ipanema. Ele está nas capas das revistas com o início, esta semana, da investigação pela Santa Sé para o processo de beatificação da menina que dividia a comida com os vizinhos pobres da sua mansão de Botafogo. Está também nos cadernos de cultura com o programa de humor do blog “Porta dos Fundos”. Neste, um homem, na mesa de jantar, frustrado por ter de escolher entre abacaxi e tangerina a sobremesa do jantar, diz que esperava mais da existência — e pergunta à mulher, Odete, o que ela quer da vida.

Uma é Odetinha, nascida em 1930, e cura os fiéis que a buscam em orações ou ao vivo, no túmulo do cemitério de Botafogo. A outra é Odete, uns 40 anos, nem feia nem bonita, aquele tipo que a vulgaridade masculina reconhece dar para o gasto. Apenas uma mulher de classe média, numa sala decorada sem quadros de santos na parede. Diante da pergunta do marido sobre o que quer da vida, ela vai direto ao assunto.

Em tom monocórdio, como se lesse a lista de compras do supermercado, responde que quer foder — e realça que não disse fazer amor, nheco-nheco ou transar. A Odete de 2013 quer dar para o porteiro, o cunhado, o personal trainer, o George Clooney, o exército israelense, a seleção africana. Não quer um de cada vez, mas todos ao mesmo tempo, esclarece.

Elas se chamam Odete e eu nunca mais tinha ouvido falar de uma desde a cantora Odete Amaral, sambista da Rádio Nacional. Estão de volta, aparentemente santas, aparentemente encapetadas — não está aqui quem as julgará. São mulheres em debate, falando da necessidade de ter a hóstia consagrada ou a sobremesa que escolherem para lhes dar sentido à vida. Houve ainda uma outra Odete, a do samba que João Gilberto regravou nos anos 1970, aquela do “Odete, ouve o meu lamento”.

Odetinha, morta aos 9 anos, em 1939, de febre paratifoide, não lamenta nada. Distribui graças. Uma delas é reconhecida pela atriz Giovanna Antonelli, agradecida por ter, depois de orações a Odetinha, conseguido o principal papel de sua carreira, o da muçulmana Jade, de “O clone”, que afronta a sociedade querendo escolher o próprio marido. A Odete, a dona de casa do “Porta dos fundos”, também não lamenta explicitamente a sua frustração. Diz ainda que quer ser chamada de vaca e vadia. Tudo de luz acesa. Trivial, como se escolhesse a calda da sobremesa, a Odete-diante-do-marido diz que quer repeteco de todo seu batalhão de amantes, acrescentando à lista o nome do nadador Michael Phelps. Zero de açúcar ou poesia. Odete usa apenas uma palavra não concreta de seu texto-desabafo. Depois de percorrer a multidão de machos espalhados entre o exército de Israel e a seleção da Nigéria, ela diz que ao final quer se sentir “extasiada”.

Uma é Odetinha, a menina-santa que carregou nas costas as chagas do mundo e, prenhe de êxtases místicos, agora deve ter o reconhecimento da Santa Igreja. O Papa e milhões de católicos a querem. A outra é Odete, a dona de casa-putinha. Cansada de carregar todas as aporrinhações do santo lar da classe média nas costas, ela agora quer que subam por ali, ou por onde preferirem, o Malvino Salvador e todos os santos másculos dos seus êxtases físicos reprimidos. Ontem, ela estava com 3.985.456 espectadores no YouTube.

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