FOLHA DE SP - 28/09
Em todo percurso, do Morumbi até minha casa, zumbis com sangue nos olhos cruzaram meu para-brisa
VOCÊ CONHECE minha tresloucada amiga Bucicleide, não? Sempre acaba sobrando na minha direção quando ela está por perto. Deu-se que eu não queria ter me internado no cinema para ver o último Batman, mas, infelizmente, Buci, digo, Cleide, submeteu-me ao calvário em 4D -a quarta dimensão deve ser por conta da luz dos smartphones que o pessoal insiste em manter ligados.
O Batman da minha geração tinha sabor tutti frutti e sacudia ao som de um teclado sapeca e uma guitarrinha despretensiosa. O de hoje é um baixo-astral retumbante, uma antecipação não se sabe bem se do Jihad ou do Juízo Final, um paralelepípedo na orelha de quem queria apenas obter prazer de um blockbuster com efeitos especiais.
E as respectivas Gotham Cities também não podem ser comparadas. Falo agora da vida real. É certo que as leis eleitorais e os usos e costumes de hoje deixam muito pouco respiro. Se isso é justo, se faz bem à democracia, se faz amadurecer politicamente, eu não sei.
O que consigo fazer aqui de forma a não pôr os pés pelas mãos (depois do advento das redes sociais, ser hostilizada pelos perdigueiros da militância passou a fazer parte do meu dia a dia) é relatar ao leitor o que eu vi no último sábado, ao sair da festa de 50 anos de um amigo arquiteto, por volta das 4 horas da manhã, prosseguindo das imediações da avenida São Valério, no Morumbi, até a rua Piauí, em Higienópolis, para depositar no local uma amiga que estava visitando a cidade, e seguindo dali diretamente para casa, na região do Jardim Paulista.
Ninguém terá a cara de pau de dizer que estou falando sobre o percurso de cerca 40 minutos e 20 km por artimanha política, não é mesmo? Pois na gestação de um trajeto entre o Morumbi e a minha casa vi os seguintes episódios (de levantar o Heath Ledger do túmulo) ocorrerem do lado de lá do para-brisa:
1) Na Nove de Julho, logo após a praça 14 Bis, no final do elevado (a pista local para o Bexiga estava interditada por obras) um sujeito esbofeteava uma moça.
2) Na rua Caio Prado, esquina com a rua da Consolação, uma guria abriu a porta do carro ao meu lado e vomitou (aparentemente) tudo o que havia ingerido desde 2010.
3) Já na volta de Higienópolis, na rua Santo Antônio, no Bexiga, um grupo de rapazes, todos de boné (deviam ser quatro) segurava um sujeito da mesma idade -o camarada estava sem camisa e também de boné, o que indica que eram todos da mesma tribo. Mas a turma da maioria barulhenta enfiava as mãos no bolso do sem camisa que cambaleava. A julgar pela estética dos movimentos, ritmo e compasso estava configurada ali uma dança do assalto. Paulistano conhece seu bumba meu boi, né não?
4) Finalmente, descendo a Nove de Julho, passado o túnel Daher Cutait, avistei um carro da polícia atravessado na pista e tirei o pé do acelerador. Dei com um caminhão-guincho. Em cima dele havia o que parecia ser uma obra da Bienal. Ao cruzar o caminhão, percebi duas rodas no ferro retorcido e reconheci um carro. Na segunda-feira, soube que o motorista daquele veículo tinha atravessado o canteiro e batido no muro do outro lado morrendo no local.
Em todo o percurso, do Morumbi até a minha casa, zumbis com sangue nos olhos cruzaram meu para-brisa, vagando de não sei onde para lugar nenhum. Um espetáculo deprimente, muita hostilidade no ar, clima pré-incendiário. Isso na região mais rica da cidade. Algo precisa mudar. A mentalidade malufista, o medo do novo, esse conservadorismo do mal já deu. Este desastre precisa ter um fim.
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