sexta-feira, setembro 28, 2012

São Paulo não aguenta mais - BARBARA GANCIA

FOLHA DE SP - 28/09


Em todo percurso, do Morumbi até minha casa, zumbis com sangue nos olhos cruzaram meu para-brisa



VOCÊ CONHECE minha treslouca­da amiga Bucicleide, não? Sempre acaba sobrando na minha direção quando ela está por perto. Deu-se que eu não queria ter me internado no cinema para ver o último Batman, mas, infelizmente, Buci, digo, Cleide, submeteu-me ao calvário em 4D -a quarta dimensão deve ser por conta da luz dos smart­phones que o pessoal insiste em manter ligados.

O Batman da minha geração tinha sabor tutti frutti e sacudia ao som de um teclado sapeca e uma guitar­rinha despretensiosa. O de hoje é um baixo-astral retumbante, uma antecipação não se sabe bem se do Jihad ou do Juízo Final, um paralelepípedo na orelha de quem queria apenas obter prazer de um block­buster com efeitos especiais.

E as respectivas Gotham Cities também não podem ser compara­das. Falo agora da vida real. É certo que as leis eleitorais e os usos e cos­tumes de hoje deixam muito pouco respiro. Se isso é justo, se faz bem à democracia, se faz amadurecer po­liticamente, eu não sei.

O que consigo fazer aqui de forma a não pôr os pés pelas mãos (depois do advento das redes sociais, ser hostilizada pelos perdigueiros da militância passou a fazer parte do meu dia a dia) é relatar ao leitor o que eu vi no último sábado, ao sair da festa de 50 anos de um amigo ar­quiteto, por volta das 4 horas da manhã, prosseguindo das imedia­ções da avenida São Valério, no Morumbi, até a rua Piauí, em Hi­gienópolis, para depositar no local uma amiga que estava visitando a cidade, e seguindo dali diretamen­te para casa, na região do Jardim Paulista.

Ninguém terá a cara de pau de di­zer que estou falando sobre o per­curso de cerca 40 minutos e 20 km por artimanha política, não é mes­mo? Pois na gestação de um trajeto entre o Morumbi e a minha casa vi os seguintes episódios (de levantar o Heath Ledger do túmulo) ocorrerem do lado de lá do para-brisa:
1) Na Nove de Julho, logo após a praça 14 Bis, no final do elevado (a pista local para o Bexiga estava interditada por obras) um sujeito esbofeteava uma moça.

2) Na rua Caio Prado, esquina com a rua da Consolação, uma guria abriu a porta do carro ao meu lado e vomitou (aparentemente) tudo o que havia ingerido desde 2010.

3) Já na volta de Higienópolis, na rua Santo Antônio, no Bexiga, um gru­po de rapazes, todos de boné (de­viam ser quatro) segurava um su­jeito da mesma idade -o camarada estava sem camisa e também de bo­né, o que indica que eram todos da mesma tribo. Mas a turma da maio­ria barulhenta enfiava as mãos no bolso do sem camisa que cambalea­va. A julgar pela estética dos movi­mentos, ritmo e compasso estava configurada ali uma dança do assal­to. Paulistano conhece seu bumba meu boi, né não?

4) Finalmente, descendo a Nove de Julho, passado o túnel Daher Cutait, avistei um car­ro da polícia atravessado na pista e tirei o pé do acelerador. Dei com um caminhão-guincho. Em cima dele havia o que parecia ser uma obra da Bienal. Ao cruzar o cami­nhão, percebi duas rodas no ferro retorcido e reconheci um carro. Na segunda-feira, soube que o moto­rista daquele veículo tinha atraves­sado o canteiro e batido no muro do outro lado morrendo no local.

Em todo o percurso, do Morumbi até a minha casa, zumbis com san­gue nos olhos cruzaram meu para-­brisa, vagando de não sei onde para lugar nenhum. Um espetáculo de­primente, muita hostilidade no ar, clima pré-incendiário. Isso na re­gião mais rica da cidade. Algo preci­sa mudar. A mentalidade malufista, o medo do novo, esse conservado­rismo do mal já deu. Este desastre precisa ter um fim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário