O artigo 20 do Código Civil assegura o direito à privacidade, preocupação legítima contra agressões à honra ou agravos à intimidade do cidadão. Mas, dependendo da maneira como é interpretado (ou aplicado), o dispositivo dá abrigo a interpretações judiciais que vão contra princípios consagrados pela Constituição — a liberdade de expressão, de imprensa e de acesso à informação — como direitos de toda a sociedade. São pressupostos que estão na base do estado democrático de direito.
O choque entre o que estipula o Código Civil e o que garante a Carta é visível na questão da censura à publicação de biografias não autorizadas. Provocada por biografados ou por seus parentes, a Justiça brasileira tem dado amparo a pedidos de proibição de obras que passam ao largo do intuito de denegrir imagens, retocar reputações ou ferir legados culturais.
Não se pode catalogar como exercício de leviandade a biografia de Garrincha, de Ruy Castro, envolvido numa batalha judicial com a família do craque, ou, liminarmente, censurar a publicação de biografias de Roberto Carlos (escrita por Paulo César de Araújo) e Guimarães Rosa (de autoria de Alaor Barbosa), apenas com o pressuposto de que se estaria trazendo à luz supostas inverdades ou fatos que desagradariam aos biografados. Como a legislação, a despeito de a Constituição consagrar a liberdade de expressão, não define explicitamente o limite entre a prerrogativa da privacidade e o direito à informação sobre pessoas públicas, e aJustiça não tem jurisprudência formada sobre o tema, abrem-se brechas para a censura.
Não se trata de defender a liberdade de informação como um direito abstrato. Uma vez tendo-se permitido avançar sobre a obra de autores de biografias, nada assegura que, por algum outro tipo de interpretação enviesada do Código Civil, não se venha a afrontar também a liberdade de imprensa — por exemplo, arguindo de jornais e revistas o direito de publicarem perfis de personalidades públicas. Por outro lado, se o espírito do artigo 20 é evitar danos à reputação, fica implícito que escrever sobre a vida de alguém não é licença para a irresponsabilidade. Autores de obras que produzam danos morais ou materiais podem ser objeto de ações penais na Justiça.
Um projeto do ex-deputado Antonio Palocci, propondo mudanças no Código Civil, permanece parado no Congresso. Mas, em boa hora, a Associação Nacional dos Editores de Livros arguiu no Supremo Tribunal Federal a incons-titucionalidade do artigo que dá abrigo a essas ações de censura. Depois de ter enterrado a Lei de Imprensa, também um instituto em desacordo com as regras da democracia, o STF tem agora a chance de acabar com esse dispositivo que empobrece a memória nacional. Que o faça o mais brevemente possível.
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