O GLOBO - 08/08
Estou dividido entre assistir às provas olímpicas e testemunhar o julgamento do mais vergonhoso plano de permanecer no poder da história da nossa douta, “legalística”, aristocrática, populista e milagrosa “semi-república”. No caso da Olimpíada, as regras são simples (não há recurso) e a igualdade competitiva é clara; no mensalão, tudo é opaco – exceto a acusação, a vontade antidemocrática de poder que o engendrou e o desejo de que as coisas não terminem em leite condensado.
Digo “semi-república” porque a expressão reitera o que, em 1979, no livro Carnavais, Malandros e Heróis, eu chamei de “dilema brasileiro”. A oscilação de uma nação que quer a igualdade perante a lei, mas na qual o Estado jamais deixou de isentar alguns dos seus cargos da responsabilidade pública, abandonando para a sociedade o papel de burro de carga de um sofisticado drama na qual ela sempre desempenhou um papel subordinado. Quando passamos de Império a República, continuamos hierárquicos e aristocráticos, mas até certo ponto; e, já republicanos, adotamos a igualdade, mas com uma tonelada de sal, inventando todas as excepcionalidades que impedem a punição dos poderosos e condena os subordinados ao castigo. Daí a importância olímpica do Supremo Tribunal Federal, cuja conduta do julgamento em curso será importante para alterar o dilema.
Temos não muitas formas de igualdade e diversos estilos de aristocratizar. Nosso maior problema não é a desigualdade; é, isso sim, a nossa mais cabal alergia e repulsa à igualdade! Quando sabemos quem é o dono, ficamos tranquilos, mas quando todos são nivelados e postos em julgamento, entramos em crise. Em toda situação reinventamos a hierarquia, mostrando quem é inferior. Nas tão odiadas (e igualitárias!) filas, isso é mais do que patente. No trânsito, uma igualdade estrutural é, infelizmente, constitutiva como digo em Fé em Deus e Pé na Tábua, e o resultado é esse escândalo de acidentes e imprudências, todos capitulados na mestiçagem das leis que igualam de um lado para “exepcionalizar” do outro.
Não foi fácil, neste Brasil de Pedros (de Avis e Bragança), criar um padrão de troca único, nivelador, confiável e, por isso, as nossas doutrinas políticas mais chiques até hoje odeiam o mercado e a sua igualdade competitiva que implica meritocracia. Essa disputa tão óbvia nos jogos olímpicos que levam ao conflito aberto e ao bate-boca – esses reversos dos padrões de comportamento nobres, baseados quase sempre na insinceridade, no realismo político segundo o qual os fins justificam os meios e o ganhar a qualquer custo; e na mentira como moeda corrente. Em suma, tudo isso que está inscrito e será julgado no mensalão.
Vivemos um momento histórico dramático: o da impossibilidade de hierarquizar impunemente, como tem sido o costume. E, ao lado disso, a demanda pela igualdade que evidentemente vai obrigar a uma transformação dos velhos códigos de comunicação, sobretudo os legais que, no Brasil, mudam e se atualizam menos do que as reformas ortográficas! Essa demanda tem aspectos radicais no que tange aos que ocupam cargos públicos. Está em curso, hoje em dia, uma intolerância jamais vista contra a ética de favores e personalismos que impediam suspeitas, avaliações e julgamentos.
Aliás, o libelo do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, foi incisivo no sentido de não isentar os atores, aceitando as desculpas mais comuns das sociedades arcaicas, reacionárias e hierárquicas: a tese do “eu não sabia”; a qual, no fundo, desvenda a posse do papel pelo ator ou, pior que isso, o controle e a propriedade do político e do partido do cargo público e, no caso do mensalão, da própria máquina política.
Quando se trata de falar da igualdade como um valor, não há como não discutir algo jamais visto na chamada “política” nacional. O fato de que é o povo que legitima pela eleição o gerenciamento de um cargo que não pertence a nenhum poder, mas a sociedade como um todo. Por isso, o povo – por meio dos tribunais e da lei que a todos subordina – pode punir o ocupante que trai o seu papel. Nosso viés aristocrático tem inibido a discussão do laço entre pessoa e papel. O que conduz ao inverso da nossa tradição, pois num regime igualitário, quanto mais nobre e importante o papel, menos desculpas para a improbidade de quem o ocupa. O poder não pode mais continuar a ser visto no Brasil como uma medalha de ouro olímpica, com direitos a isentar os eventuais crimes de quem está no poder. Ele deve ser redesenhado como algo que implica direitos e privilégios, mas sobretudo honra, austeridade e obrigações. Na democracia, como viu Tocqueville, os cargos públicos implicam mais deveres do que privilégios. Como, aliás, ocorre na Olimpíada quando um atleta recebe uma medalha de ouro se vê compelido a ser também possuído pela excelência que o prêmio representa.
Resta esperar que o TSF decida olimpicamente – sine ira et studio (sem raiva, preconceito ou condescendência), como dizia Max Weber – e, assim fazendo, mude a índole das práticas políticas brasileiras.
Um comentário:
Bela análise, mas até mesmo por tratar-se de um autor como Roberto da Matta resta a inquietação provocada pelo aparente simplismo: este comportamento brasileiro não nasceu com mensalão algum, vem de mais de 500 anos de predomínio de uma das elites mais cruéis no mundo ocidental. Neste sentido, o alarde em torno deste caso específico nada mais é do que uma tentativa de resgate da situação e dos atores anteriores.
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