Me coça a mão quando penso que um pai cadeirante pode ter um moleque craque de bola
Previ que o caldo entornaria quando ele surgiu, todo fofo e cambaleante, na tela da TV. A publicidade está cada vez mais se aperfeiçoando em escolher bebês com o poder de acertar sem piedade o coração de consumidor da gente, inclusive para aguçar o desejo por "produtos" risonhos, chorões, guti-gutis e manhosos iguais a eles mesmos.
-Amor, quando vamos ter neném?
Mantive o ritmo da respiração, preparei o melhor olhar blasé, acheguei-me da cintura dela insinuando preguiça de conversar. Tentei ganhar tempo, mas nada que prestasse ou fosse o golpe final para o assunto me veio à mente.
--Oi, meu bem? A canjica tá uma "deli". Acertou o ponto. O amendoim tá tão crocante...
-Quero ser mãe! Você sabe disso, não desconverse. Vamos ter de tomar essa decisão uma hora ou outra. Certeza que você será um ótimo pai! Ah, o Natal em família...
Estou a cada dia mais encalacrado. Já houve o momento dos nomes -Elis, se for menina, está fechado-; já pensamos na logística para a tenra infância, quando iremos arregimentar as avós para dar conta dos momentos mais tensos do rebento; já decidimos voar para um ninho um bocadinho maior onde haverá mais espaço para dois "carrinhos" -o meu e o do baby.
Mas ainda não conseguimos fechar o "acordo" para acionar o botão verde que poderá abrir o caminho da possível vinda de um serzinho metade mineiro, metade sul-mato-grossense, torcedor do Santos e de coração canarinho. Um luxo de miscigenação!
-Você já tem trabalho demais comigo. Haja força para catar meus cacos quando caio da cadeira, haja saco para aturar meus poemas barrocos sobre meu chefe, haja paciência para rediscutir aquela cena do filme do Almodóvar. Como um bebê vai caber nisso? Os juros nem começaram a cair direito.
-Tudo se ajeita. A gente cria uma nova rotina, reorganiza o cotidiano, o tempo. Caso contrário, ninguém teria filho. Vai ser lindo. Quando?
Tenho pânico de botar no Brasil mais um "serumano" desacreditado de valores. Já tem gente demais que cultiva ganância, brutalidade, competição exacerbada, egoísmo, preconceito, falta de cidadania.
-O finado Renato Russo já dizia, nos anos 90, que o "o mundo anda tão complicado", pense como serão as coisas no tempo desse menino. A raça humana não melhora, deusa. Ainda tem tanta maldade, tanta CPI. Imagina o terror que será caso ele não goste de arroz com brócolis.
-Por isso mesmo. Vamos tentar contribuir para mudar. Fazer o melhor para criar uma menina amável, justa ou um menino solidário, amigo, batalhador. Alguém precisa ter esperança na vida.
Apaga a luz, Jesus! Não será com argumentos que considero racionais que vou conseguir driblar um desejo tão legítimo, tão natural e tão profundo da maioria das mulheres.
Vá lá, admito também que me coça a mão quando imagino receber um abraço de bracinhos de filho, quando penso que um pai cadeirante pode ter um moleque craque de bola ou uma mocinha que irá empurrá-lo com algum orgulho.
Tenho pensado muito em seguir o mesmo caminho que o Frejat adotou em uma música que não para de tocar no rádio e na minha cabeça. "O nosso amor não é só de pele/ E de pelo/Se quiser ter um neném/Tudo bem, vamos tê-lo."
Nenhum comentário:
Postar um comentário