sexta-feira, maio 04, 2012

Risco de fratura no Estado de Direito - NELSON CALANDRA


FOLHA DE SP - 04/05/12


Tornar enriquecimento ilícito crime nada resolve. Pune-se juiz, servidor e político, mas não os grupos privados líderes do desvio do dinheiro público
Volta e meia, mandamos a bola na trave e não gritamos gol, porque ficamos na periferia dos problemas e, por essa razão, não acertamos o chute. Alterações legislativas, como a que pretende criminalizar parcialmente o enriquecimento ilícito em nome do combate à corrupção, nada resolvem.
Nós vivemos em um país democrático. A exigência é que para, punir alguém, haja previsão legal, e o encarregado de provar a culpa deve ser o Estado e não o réu.
Na medida em que se cria uma ferramenta de exceção, com o mote de punir pessoas, em uma situação em que elas tenham que demonstrar que são inocentes, abre-se uma brecha no sistema processual penal e no sistema de garantia constitucional que pode gerar uma fratura no Estado de Direito.
Não é possível criar uma lei dizendo que "nós não temos a menor competência para combater a corrupção; é permitido roubar o Estado, só que, dez ou 15 anos depois, aquele que acumulou fortuna a custa do erário, se ainda estiver vivo, tem de mostrar que não é culpado".
Assim, se ele não provar que é inocente, depois de décadas, será punido como culpado. Isso é uma declaração de falência do próprio sistema processual e penal brasileiro.
A proposta inverte, na verdade, o ônus da prova. Se a mudança for feita sem alterar a Constituição e o elenco de garantias fundamentais, será inconstitucional. Se for alterada por meio de emenda constitucional, também será inconstitucional, porque se trata de uma cláusula que não pode derrogar as garantias do sistema.
Em vez de seguir tendência mundial, a proposta nos põe na contramão da história ao punir apenas o servidor, o político e o juiz, ao contrário do que assistimos hoje, quando grupos privados comandam rede criminosa de desvio do dinheiro público.
Talvez a grande modificação necessária não esteja dentro da legislação penal, mas na órbita do Poder Legislativo.
Por exemplo, é necessário repensar algumas regras ligadas às CPIs. Uma vez instaladas, elas são conduzidas por pessoas que, embora ilustres, não têm vivência no campo das ações penais ou da investigação processual.
O risco que se corre é produzir uma densa documentação que, muitas vezes, não vem calcada nas boas técnicas processuais penais, que nós, juízes e promotores, somos obrigados a observar no dia a dia.
O que reduz a corrupção é um sistema legal que funcione, penas cumpridas efetivamente e um Ministério Público e uma Polícia Federal equipados para combater delitos financeiros. Sem isso, não há a menor condição.
Fazer o quê? Primeiro, é preciso se preocupar em evitar esse tipo de dano. Depois, tem que haver um debate com toda a sociedade.
Frequentemente, todos se perguntam por que ainda não foi feita a reforma política, a chamada mãe de todas as reformas, para conter o descrédito e a desmoralização constante e crescente.
Enquanto ela não vem, o financiamento de campanhas eleitorais, por exemplo, chega a ser público e também privado, mas nunca aberto. Permanece encoberto sob o manto da vergonha. Aí, o mal ganha o nome de corrupção, caixa dois, e contamina ora o setor público, outra vez, o privado, muitas vezes os dois simultaneamente.
Há uma relação perversa e sadomasoquista que, vez ou outra, adoece o país. Conhecemos de sobra nossos problemas, desde os primeiros sintomas até os casos mais agudos, bem como o remédio para esses males. Para minimizar a necessidade de cura, banalizamos a moléstia, sem perceber que ela chegou a um estado de epidemia antiética e que não temos à mão as vacinas necessárias para evitar o mal que nos assola nem sua reincidência.
NELSON CALANDRA, 66, é presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)

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