O GLOBO - 26/12/11
A história já é tão conhecida que quase não precisa mais ser contada. O cenário é o de um país situado no hemisfério sul, de renda média que ousou inscrever em sua Constituição a garantia do direito universal à saúde. Tempos depois, o SUS, apesar dos trancos que marcaram sua origem e de ter sido empurrado para diversos barrancos, ainda permanece de pé. Mas quem disser que esse SUS que aí está não é aquele aprovado pela Constituição porque nem é único e nem tão universal não estará mentindo.
A saga da longevidade e descaracterização do SUS é menos popular. A durabilidade da política universal de saúde deve-se ao acerto de seus formuladores sobre as relações entre a maneira como se organiza e desenvolve uma sociedade e as condições de saúde da população. Atualmente, um brasileiro doente pode receber um benefício previdenciário, auxílio transporte para comparecer aos serviços de saúde, ser atendido no SUS, em certos casos, em seu domicílio, e receber medicamentos gratuitamente.
Trata-se de uma proteção social integrada e integradora, tal como prevê o capitulo da Seguridade Social da Constituição. Por outro lado, o esmaecimento do projeto de construção de um sistema de saúde igualitário decorre de previsões acertadas de quem era contra o SUS. A validade do vaticínio "é impossível fazer brotar igualdade de um solo no qual só vicejavam disparidades estruturais" foi renovada condicionalmente. A reinserção dos interesses empresariais da saúde nas coalizões governamentais pós-redemocratização efetivou-se mediante entusiasmada adesão à ideia de um SUS para quem não pode pagar.
A recusa do governo federal, legitimada pelo Congresso Nacional no fim de 2011, de ampliar recursos para o SUS dinamiza um subsistema público subfinanciado e um subsistema privado crescentemente subsidiado com recursos públicos.
Em termos práticos, os direitos abrangentes, já disponíveis para quem tem problemas de saúde muito graves não serão estendidos para os saudáveis ou para usuários eventuais de serviços de saúde. Os não doentes e segmentos de maior renda são cobertos por planos e seguros privados de saúde, e os pobres ou requerentes de serviços de saúde muito caros ficam no SUS.
Assim, a divisão pragmática de mercados na saúde assume internamente condição de política oficial, a despeito de repetidas pesquisas de opinião evidenciarem que a saúde é o principal problema a ser resolvido pelo governo mesmo para quem está vinculado a planos e seguros privados de saúde.
Entretanto, a tendência mundial, apesar e por causa da possível deterioração dos tradicionais sistemas de proteção social, é a de priorizar as políticas universais de saúde. Ao longo deste ano, ficamos bem na foto. Segundo a Declaração da Conferência Mundial dos Determinantes Sociais da Saúde, realizada este ano no Brasil, "para que haja saúde é necessário que o sistema de saúde seja universal, abrangente, equitativo, efetivo, ágil, acessível e de boa qualidade e ainda envolvimento e do diálogo com outros setores e atores, visto que o desempenho dos mesmos gera impactos significativos sobre saúde". Os participantes de 130 países e 62 ministros de estados presentes consideraram que a crise econômica e financeira global deve estimular a inclusão da saúde e o bem-estar entre as mais altas prioridades nos níveis local, nacional, regional e internacional.
Em 2012, a Rio+20 convocará o posicionamento dos governos, empresários e movimentos sociais sobre a sustentabilidade do desenvolvimento, incluindo a dos sistemas de saúde.
A pergunta a ser respondida será sobre o modelo de sistema de saúde que dá melhores respostas em termos de custo-efetividade aos determinantes sociais da saúde. E o SUS será novamente o melhor cartão de visitas a ser apresentado em um ambiente que exigirá do Brasil discrição em relação à ênfase em políticas públicas voltadas ao provimento de infraestrutura e financiamento de negócios.
Por aí afora, muitos economistas sérios não deixam de considerar a saúde na análise dos limites e perspectivas do desenvolvimento do capitalismo ou acreditam que o sistema de saúde possa ser encarado como um mercado qualquer. As previsões de que a saúde, em consequência da inovação tecnológica e envelhecimento, represente daqui a alguns anos 30% do PIB de vários países já seria motivo de sobra para não deixá-la de lado. Ademais, é sobejamente sabido que o comportamento dos preços exige intervenção governamental. Sem que se defina responsavelmente o que é saúde e o que é doença, características físicas ou sintomas como sobrepeso e hipertensão podem ser encarados respectivamente como sentenças de morte e mercados potenciais para a venda de exames e medicamentos.
Reputados economistas brasileiros, à frente de cargos públicos, ignoraram até agora a saúde em suas análises. Contudo, ficará difícil manter ouvidos moucos diante da estridência de agendas socioambientais que valorizam a construção de pontes entre política social e econômica. O SUS terá um megadestaque na Rio+20. Quem tiver o mínimo de noção aproveitará a ocasião para converter metas econômicas em créditos, dividendos e superávit de saúde. Até junho, dá tempo para sair da redundância da suposição de que o consumo, inclusive o de serviços de saúde e medicamentos, é um fim em si mesmo.
Teremos um feliz e próspero ano novo, se as alternativas para as mudanças climáticas e preservação dos ecossistemas forem adequadas a uma inserção tecnológica baseada na produção e controle de inovações. As abordagens defensivas e céticas emprestaram às políticas universais atributos de peso orçamentário ou estorvo utópico. No entanto, é o SUS, fundamentado na concepção sobre a determinação social da saúde, que possui todas as credenciais de sistema sustentável. Que em 2012 a boa fama internacional do SUS seja saúde-presente no cotidiano de todos nós.
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