O GLOBO - 26/12/11
“O senhor não acha que quatro presos e nenhum tiro disparado foi um resultado fraco para a retomada da Rocinha?”
A pergunta me foi feita por um repórter, poucas horas após a Operação Choque de Paz, que resultou na retomada da Rocinha, do Vidigal e da Chácara do Céu, três comunidades que durante décadas foram subjugadas pelo domínio dos fuzis dos traficantes. Na verdade, a operação compreendeu várias outras incursões em comunidades aliadas da facção que dominava a Rocinha, iniciadas no começo de novembro e que continuaram sendo realizadas depois da retomada das três comunidades.
Resultou, até agora, na prisão de 70 bandidos — incluindo o Nem e outros chefes de quadrilhas — e na apreensão de 263 armas de fogo, 122 granadas, 93 bombas artesanais e mais de 60 mil balas de diversos calibres, um verdadeiro arsenal de um pequeno exército. E representou, acima de tudo, a liberdade de ir e vir para cerca de 70 mil pessoas.
Por trás da frustração do repórter, talvez provocada pela falta de cenas “espetaculares” como as que foram transmitidas pela TV para o mundo inteiro na retomada do Complexo do Alemão, vejo uma falta de percepção, por parte da opinião pública, do verdadeiro papel das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
A função das UPPs — que estão longe de representar a solução definitiva para os problemas de segurança do Rio — me remete a outro momento não muito distante da história do Brasil, quando um grupo de professores de economia da PUC do Rio criou um mecanismo que viabilizou a passagem de um momento crítico, sem solução à vista, para um período longo de estabilidade econômica, que persiste até os dias de hoje. Essa história está muito bem contada no livro “Saga brasileira: a longa luta de um povo por sua moeda”, da jornalista Miriam Leitão.
Naquela época, início dos anos 90, o Brasil chegou a ter 80% de inflação em um único mês — um enorme contraste com a realidade atual, de um índice inflacionário de 7% ao ano. Vários planos econômicos haviam sido tentados e todos fracassaram. A população estava cada vez mais descrente da capacidade do governo de mudar alguma coisa. Os mais velhos lembram-se bem de como era viver com reajustes dos preços que deram ao Brasil o indesejável título de “campeão mundial da inflação”. Entre julho de 1964 e julho de 1994 (ano do Plano Real) acumulamos uma inflação medida pelo IGP-DI de fantásticos 1,3 quatrilhão%. Quando contamos isso para os mais jovens, ouvimos a pergunta: “Como isso era possível?”
Em seu livro, Miriam Leitão relata a “mágica” do Plano Real: a Unidade Real de Valor (URV), que abriu o caminho para a estabilidade. “A URV tinha apenas uma das funções da moeda, era unidade de conta, mas não existia fisicamente. Não era uma nova moeda. Era uma véspera de moeda.” Foi uma solução de resultado rápido? Não, mas acabou sendo o caminho seguro para extinguir, a médio e longo prazos, a indexação de preços e salários, principal combustível da hiperinflação. Mesmo com a genialidade financeira da equipe de economistas criadores da URV, o país ainda precisou de uma geração inteira para domar o mal inflacionário.
A saga do combate ao “dragão da inflação” guarda uma importante similaridade com a luta do povo do Rio pela paz. Tal como a estabilização da economia brasileira, a pacificação é um processo que demandará anos para ser consolidado. Sempre que me perguntam se as UPPs vão livrar o Rio das drogas e da violência, respondo que não podemos brincar com esperança das pessoas ou agirmos como mercadores de ilusões. É preciso ter responsabilidade. As UPPs, por si, não são a solução definitiva. Mas abrem caminho para construirmos uma nova realidade duradoura.
Assim como a URV, as UPPs devem ser compreendidas como um mecanismo de transição do velho para o novo modelo de segurança pública e, em consequência, de uma nova realidade de desenvolvimento econômico e social da cidade do Rio de Janeiro.
No antigo modelo, o Estado não se fazia presente em áreas carentes e a polícia era violenta. Os traficantes, na luta por mais poder e lucros, introduziram as armas automáticas e criaram ilhas de violência, separadas da sociedade. Esse processo foi sintetizado pelo jornalista Zuenir Ventura em seu livro “Cidade partida”.
O novo modelo é simples: a retomada dessas áreas pelo Estado e sua reintegração à cidade. As UPPs são apenas a primeira fase desse processo, o direito de milhões de pessoas a dormir em paz. A pacificação não se resume às UPPs, mas começa com elas. Assim como na estabilização econômica a URV preparou o caminho para a chegada do Real, as UPPs são o instrumento de transição do jugo da violência para o regime de cidadania, onde o Estado está de volta com serviços essenciais como saúde, educação, água, saneamento, coleta de lixo e iluminação pública.
Com a chegada da Polícia Pacificadora, com homens e mulheres treinados não apenas para enfrentar a violência — mas também, e principalmente, para conversar e negociar com a comunidade —, o poder público agora encontra as portas dessas comunidades abertas para receber serviços que demandam há décadas.
Sonho com o dia em que meu neto, incrédulo, perguntará: “Vovô, como era possível que os morros do Rio fossem dominados por bandidos, que não deixavam a polícia entrar?” Esse dia há de chegar!
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