domingo, novembro 27, 2011
HITCHCOCKIANA - LUIS FERNANDO VERISSIMO
O GLOBO - 27/11/11
Ele gritou:
– Janela Indiscreta!
Ela:
– O quê?
– O filme que você está vendo. Posso ver a sua televisão daqui.
Os fundos dos dois apartamentos davam para o mesmo poço. Mesmo andar. Da área de serviço de um se via tudo do outro.
Ele:
– Adoro o Hitchcock.
Ela:
– Eu também.
Já tinham se visto no elevador. Ela morava com uma amiga que nunca aparecia.
– Qual é o seu Hitchcock favorito?
– Estou vendo Janela Indiscreta pela décima vez. Mas acho que meu favorito é Um Corpo que Cai. O seu?
– Os Pássaros.
Ela fez uma cara feia.
Dias depois se encontraram na loja de vídeos.
– Olha o que eu achei – disse ele.
Era Notorius. Aquele em que a Ingrid Bergman e o Cary Grant se encontram na Cinelândia e concordam que o Rio é muito chato. Ela mostrou o filme que tinha alugado. Os Pássaros. Ia rever para ver se desta vez gostava.
– Você não precisa gostar só porque eu gosto.
– É por boa vizinhança – disse ela, rindo.
Naquela noite conversaram, área de serviço a área de serviço. Ele disse que o Notorius tinha envelhecido um pouco. E ela, o que achara de Os Pássaros?
– Sei não... – disse ela.
– Vamos ter que vê-lo juntos.
Foi na noite seguinte. Apartamento dela. A amiga, diplomaticamente, no seu quarto. Os dois na sala. Os Pássaros, argumentou ele, é o filme metafísico do Hitchcock. O único filme de terror na história do cinema sem monstros e sem vilões. O vilão é o mundo, é a natureza reagindo ao homem, uma ordem pré-humana se...
Antes de ele terminar a frase já estavam se beijando. Nem chegaram a colocar o DVD.
Passaram a se encontrar quase todas as noites. Só viam Hitchcock. Às vezes discutiam, “Topázio é um Hitchcock menor!”. “O quê? O quê?!”. Passavam alguns dias sem se ver. Aí ele batia na porta dela com uma raridade (Sabotagem, por exemplo) e faziam as pazes. Até que um dia a amiga saiu do quarto e ele viu que se tratava de uma loira irresistivelmente hitchcockiana, e se apaixonou, apesar da loira dizer que seu filme favorito era Ghost. Ele tentou explicar sua traição (“Eu sou coerente! Eu sou coerente!”) mas não adiantou. Foi morto com uma tesourada, como em Disque M para Matar.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário