Cézar
FERNANDA TORRES
REVISTA VEJA - RJ
Nunca fui de muitos amigos. Não chego a ser sociofóbica, mas a solidão sempre me trouxe paz. Se, na juventude, sair em turma não era o meu forte, a idade piorou ainda mais esse traço casmurro de minha personalidade.
A vida adulta cria empecilhos para a conquista de novas amizades. Eu mal dou conta da saudade que tenho das velhas. Cruzo com muita gente com quem gostaria de estabelecer um convívio mais profundo, mas a dobradinha trabalho e crianças pequenas dificulta algo simples como sentar num bar e jogar conversa fora.
Como toda regra tem exceção, fiz um laço eterno com um baiano fantástico no dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá, em Salvador. Seu nome é Cézar Mendes, músico, compositor e magnífico violonista; uma personalidade discreta, gentil e bem-humorada que a Bahia me deu, graças a Deus.
É dele a melodia diáfana de Carnalismo, a faixa mais delicada de Os Tribalistas. Para quem nunca ouviu, ou não se lembra de ter ouvido, aconselho escutar para entender a preciosidade da alma que aqui descrevo.
Cezinha insistiu em me fazer cantar e me deu um violão de presente de aniversário. O regalo veio acompanhado das aulas ministradas pelo próprio, professor talentosíssimo, o que arraigou ainda mais nossa intimidade. Lentamente, afino meus acordes e descubro tarde a razão de Pedro Baby, outra preciosa aquisição recente, afirmar que o violão é o melhor amigo do homem.
Depois de ler meu artigo sobre a eucaristia aqui em Veja Rio, Cézar me escreveu dizendo que compartilhava do meu estranhamento com relação ao rito católico e me contou uma história extraordinária sobre seu avô. Com a licença dele, é claro, compartilho com os leitores a riqueza do causo.
Cezinha nasceu em Santo Amaro, terra de dona Canô, mãe de Caetano, e Bethânia. Seu irmão, Roberto, é outro gênio das cordas. Todos cresceram no Recôncavo Baiano e descobriram juntos João Gilberto, Caymmi, Tom, Vinicius, Roberto, os Beatles e os Rolling Stones.
Já adulto, Cézar participou da gravação de um programa de TV com a presença de dona Canô. Quando o repórter perguntou à matriarca dos Veloso sobre a sua percepção a respeito da religiosidade em Santo Amaro, dona Canô se virou para Cezinha e disparou: “Esse rapaz aqui, por exemplo, é neto de padre”.
Desconhecedor do fato, ele soube ali, diante das câmeras, que o padre João de Deus era um mulato lindo, de voz contagiante, que fazia sucesso entre as beatas da paróquia. A musicalidade dos netos teria vindo do avô.
No dia de Nossa Senhora da Purificação, o mesmo 2 de fevereiro que anos mais tarde me ligaria a Cezinha, um bispo presente à procissão perguntou se os dois meninos que acompanhavam o pároco eram os coroinhas. João de Deus não titubeou em responder que não, que aqueles eram seus filhos. O superior teve um mal súbito e exigiu que lhe tirassem a batina. Dando provas de seu espírito de vanguarda, Santo Amaro se reuniu para impedir que fosse feita a vontade do bispo.
João de Deus jamais escondeu o amor por Noly (pronuncia-se Nóly), moça linda, branca e de família rica. Vestindo o hábito, costumava passear de mãos dadas pelas ruas com a amada. No dia em que ouviu um conterrâneo chamá-la de mula de padre, deu uma sova no desgraçado e o entregou ao delegado. Depois da morte do companheiro, Noly nunca mais vestiu outra cor que não o preto.
Nenhum membro da família compareceu ao enterro dessa mulher. Ela foi deserdada assim que assumiu o relacionamento com João. Os parentes a rejeitaram não por ela ter se casado com um padre, mas sim com um negro.
“Racistas”, conclui Cezinha, e arremata: “Naquela época, padre gostava de mulher”.
Apesar da falta de tempo e da correria da maturidade, não se pode perder alguém do calibre de Cézar Mendes. Meu mais recente velho parceiro, testemunha ocular das melhores histórias.
A vida adulta cria empecilhos para a conquista de novas amizades. Eu mal dou conta da saudade que tenho das velhas. Cruzo com muita gente com quem gostaria de estabelecer um convívio mais profundo, mas a dobradinha trabalho e crianças pequenas dificulta algo simples como sentar num bar e jogar conversa fora.
Como toda regra tem exceção, fiz um laço eterno com um baiano fantástico no dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá, em Salvador. Seu nome é Cézar Mendes, músico, compositor e magnífico violonista; uma personalidade discreta, gentil e bem-humorada que a Bahia me deu, graças a Deus.
É dele a melodia diáfana de Carnalismo, a faixa mais delicada de Os Tribalistas. Para quem nunca ouviu, ou não se lembra de ter ouvido, aconselho escutar para entender a preciosidade da alma que aqui descrevo.
Cezinha insistiu em me fazer cantar e me deu um violão de presente de aniversário. O regalo veio acompanhado das aulas ministradas pelo próprio, professor talentosíssimo, o que arraigou ainda mais nossa intimidade. Lentamente, afino meus acordes e descubro tarde a razão de Pedro Baby, outra preciosa aquisição recente, afirmar que o violão é o melhor amigo do homem.
Depois de ler meu artigo sobre a eucaristia aqui em Veja Rio, Cézar me escreveu dizendo que compartilhava do meu estranhamento com relação ao rito católico e me contou uma história extraordinária sobre seu avô. Com a licença dele, é claro, compartilho com os leitores a riqueza do causo.
Cezinha nasceu em Santo Amaro, terra de dona Canô, mãe de Caetano, e Bethânia. Seu irmão, Roberto, é outro gênio das cordas. Todos cresceram no Recôncavo Baiano e descobriram juntos João Gilberto, Caymmi, Tom, Vinicius, Roberto, os Beatles e os Rolling Stones.
Já adulto, Cézar participou da gravação de um programa de TV com a presença de dona Canô. Quando o repórter perguntou à matriarca dos Veloso sobre a sua percepção a respeito da religiosidade em Santo Amaro, dona Canô se virou para Cezinha e disparou: “Esse rapaz aqui, por exemplo, é neto de padre”.
Desconhecedor do fato, ele soube ali, diante das câmeras, que o padre João de Deus era um mulato lindo, de voz contagiante, que fazia sucesso entre as beatas da paróquia. A musicalidade dos netos teria vindo do avô.
No dia de Nossa Senhora da Purificação, o mesmo 2 de fevereiro que anos mais tarde me ligaria a Cezinha, um bispo presente à procissão perguntou se os dois meninos que acompanhavam o pároco eram os coroinhas. João de Deus não titubeou em responder que não, que aqueles eram seus filhos. O superior teve um mal súbito e exigiu que lhe tirassem a batina. Dando provas de seu espírito de vanguarda, Santo Amaro se reuniu para impedir que fosse feita a vontade do bispo.
João de Deus jamais escondeu o amor por Noly (pronuncia-se Nóly), moça linda, branca e de família rica. Vestindo o hábito, costumava passear de mãos dadas pelas ruas com a amada. No dia em que ouviu um conterrâneo chamá-la de mula de padre, deu uma sova no desgraçado e o entregou ao delegado. Depois da morte do companheiro, Noly nunca mais vestiu outra cor que não o preto.
Nenhum membro da família compareceu ao enterro dessa mulher. Ela foi deserdada assim que assumiu o relacionamento com João. Os parentes a rejeitaram não por ela ter se casado com um padre, mas sim com um negro.
“Racistas”, conclui Cezinha, e arremata: “Naquela época, padre gostava de mulher”.
Apesar da falta de tempo e da correria da maturidade, não se pode perder alguém do calibre de Cézar Mendes. Meu mais recente velho parceiro, testemunha ocular das melhores histórias.
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