Outros tempos
JOSÉ PAULO KUPFER
O ESTADÃO - 04/10/11
Pouco mais de um mês depois do lançamento do programa apelidado pelo marketing do governo de Plano Brasil Maior, a mudança do regime automotivo, em meados de setembro,trouxe à baila, mais uma vez, o debate insepulto e inconclusivo em torno do valor e da eficácia das políticas industriais.
Também mais uma vez, a qualidade dos argumentos a favor e contra deixou a desejar.
A resposta mais comum à negação governamental de ofício do caráter protecionista das medidas foi a de um manual econômico já superado.
Não deixa de ser curioso observar que, ao definir as ações do governo como uma volta ao protecionismo dos anos 70, em que se dava proteção e subsídios a setores e empresas escolhidos pelo governo, a crítica emprega conceitos e argumentações dos... anos 70.
No mundo do comércio internacional, as diferenças entre os anos 70 e 2011 são tão gritantes que é melhor deixar na prateleira da história as ideias daquele tempo, tanto para formular políticas quanto para criticá-las. O ambiente econômico em que a questão hoje se coloca é, sem dúvida, muito diferente daquele existente nos primórdios da globalização.
O volume de bens transacionado no mercado global, nesses 40 anos, para começo de conversa, multiplicou por 15.
Se atualmente prevalece o câmbio flutuante, nos anos 70 o regime dominante, recém-saído do dólar-ouro, era o de câmbio fixo, com suas serpentes cambiais a atrelar uns aos outros. Sem falar numa mudança fundamental ocorrida mais à frente, na virada do século,como advento da China - de suas variadas peculiaridades econômicas e comerciais -, como avassaladora protagonista global.
No caso específico do aumento temporário do IPI, por exemplo,seria possivelmente mais apropriado considerar tal "política", apesar de toques típicos, não como industrial, mas, isso sim, comercial.
Uma política, em resumo, de guerra comercial - com seus ingredientes protecionistas -, em reação a um quadro de desvantagens competitivas, exacerbadas por defasagens cambiais.
Algo diverso do ocorrido nas décadas de 70 e 80, quando, sob a liderança de empresas estatais, o protecionismo avançou com o objetivo de substituir importações.
Estimuladas pela polêmica decisão do governo, as discussões sobre as fragilidades competitivas brasileiras deixaram pouco espaço para que se tentasse responder à pergunta crucial: existem razões para o governo querer impor tarifas compensatórias a importações? Um estudo recente, coordenado pela professora Vera Thorstensen, da Escola de Economia de São Paulo (EESP/FGVSP), que durante 15 anos, até 2010, foi a principal assessora econômica da missão brasileira na Organização Mundial do Comércio (OMC), oferece indicações bem detalhadas dos efeitos dos atuais desalinhamentos cambiais, nas grades tarifárias negociadas pelos países na OMC.
Valendo-se de uma variedade de modelos analíticos, a pesquisa leva à conclusão de que, dependendo do grau de valorização ou desvalorização das moedas locais, os países podem estar aplicando tarifas abaixo ou acima dos níveis de proteção negociados na OMC.
No caso brasileiro, diante de câmbios desvalorizados, como os dos Estados Unidos e da China, os níveis tarifários negociados são anulados e, na prática, se tornam negativos. "O Brasil está oferecendo acesso a seus mercados de forma muito mais aberta do que negociou na OMC", avalia o estudo.
Na OMC, porém, não existem, até agora, mecanismos de solução de conflitos cambiais ou de compensação tarifária nesses casos, embora seus dispositivos, de acordo com especialistas, caso da brasileira Vera Thorstensen, abriguem brechas para tanto. Uma hoje inexplicável divisão de tarefas entre OMC e Fundo Monetário Internacional (FMI), estabelecida ainda na época do dólar-ouro, reservou ao Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês), antecessor da OMC, as questões do comércio internacional, ficando sob controle do FMI os assuntos referentes a balanço de pagamentos e câmbio.
Na ausência, em foro multilateral adequado, de um mecanismo que abra espaço para a proteção das economias nacionais contra situações de dumping cambial, o que resta é sucumbir ou partir para o protecionismo.
Mas aí o que se tem é um falso impasse, na medida em que nenhuma das duas saídas é capaz de levar a um final feliz.
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