quinta-feira, setembro 01, 2011

GILMAR MENDES - A lei e os porões

A lei e os porões
 GILMAR MENDES
O GLOBO - 01/09/11


Desde que Nelson Hungria resumiu a situação carcerária do país em frase lendária — “As penitenciárias são a universidade do crime” — passou a senso comum o fato de que, no Brasil, longe de recuperar, cadeia embrutece, forma e especializa delinquentes.

Faz tempo que o sistema alcançou o ápice da obsolescência. Superlotadas e promíscuas, nossas prisões espelham toda sorte de ilegalidades — demonstradas às escâncaras, aliás, nos mutirões realizados pelo Conselho Nacional de Justiça há cerca de três anos — a começar pelo número excessivo de prisões preventivas (1/3 do total), como se fosse compatível com o Estado de Direito a punição sem o julgamento legal. O problema ultrapassa a esfera dos direitos humanos. Tem a ver, mais de perto, com a efetividade da segurança pública e a eficácia da prestação da Justiça no país. E aí indiferença da sociedade, além de cruel, mostra-se contraproducente. É que, como sabido, a dificuldade da ressocialização dos presos recrudesce a violência e sobrecarrega o erário com medidas de repressão mais custosas e, ainda assim, precárias.

Por isso também se mostra tão bemvinda a Lei no- 12.403/11, que, ao modernizar o Código de Processo Penal, retira os juízes da camisa de força ajustada às alternativas anteriores: prisão ou liberdade. À luz dos princípios da necessidade e proporcionalidade, a lei enfatiza a excepcionalidade da prisão do acusado, prestigiando a presunção constitucional da inocência.

Com esta lei, dissociam-se claramente suspeitos de condenados. E, como consequência, acaba por reservar as parcas vagas dos presídios aos criminosos perigosos, reincidentes ou de culpabilidade comprovada. Em síntese, passa a prevalecer a lógica: o sujeito que furtou o supermercado, meteu-se em briga ou desavisadamente comprou mercadoria roubada não disputará o beliche da cela abarrotada com o homicida serial já condenado a 300 anos de cadeia.

A lei também diminui a desigualdade de meios que faz estragos até — ou principalmente — na prestação de serviços públicos. É que o juiz deve decidir de ofício — ou seja, independentemente de pedido de advogado ou defensor — a liberação de acusados pelo cometimento de crimes dolosos puníveis com penas de até quatro anos, devendo adotar a medida cautelar que lhe parecer mais conveniente ao caso. Antes de decretar a prisão preventiva que afastaria o incriminado, o julgador pode, por exemplo, determinar que o acusado se recolha ao próprio domicílio à noite e nos dias de folga. Àquele que fez ameaças, pode proibir qualquer contato com a vítima ou o acesso a lugares por ela frequentados.

Ao todo, são dez opções de medidas cautelares que, aplicadas cumulativamente ou não, mostram- se como recursos inteligentes direcionados a controlar a pessoa incriminada e a proteger a sociedade com ônus mínimo ao Estado. É muito importante deixar claro que essa liberdade vigiada restringe-se ao período que antecede o julgamento e objetiva essencialmente a evitar o cumprimento antecipado de pena ainda não fixada.

A Lei também atualiza o instituto da fiança e cria o banco de dados de mandados de prisão, de modo a possibilitar, sem maiores burocracias, a prisão de foragidos em qualquer unidade da Federação. Àqueles que argumentam com as teses do aumento da insegurança ou da sensação de impunidade, cabe lembrar o fracasso do modelo de repressão adotado até aqui, além do despropósito de se continuar aplicando critérios de encarceramento estabelecidos num código de 70 anos de idade, sobretudo sabendo que o mundo mudou completamente nas últimas duas décadas, graças à mesma revolução tecnológica que disponibilizou instrumentos infinitamente mais eficazes, a exemplo das tornozeleiras eletrônicas conectadas à rede GPS. Há quem diga que a lei abrirá “os portões do inferno”.

É de considerar, ainda, que o mais grave seria manter trancafiado quem nada fez para tão severa reprimenda. Repito: a lei enfatiza a prevenção, evita injustiças — encarcerar inocentes talvez venha a ser a maior e mais danosa — e abre espaço para ressocialização mais efetiva, à medida que, desde o começo do processo, molda o malfeito ao castigo, que pode muito bem reverter em maior proveito da comunidade. Além de desobrigar o Estado de investir, pesada e malevolamente, nos cada vez mais sofisticados cursos de pós-graduação em bandidagem. 

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