Ponto de cruz
FERNANDA TORRES
REVISTA VEJA - RIO
A televisão é um incrível monstro engolidor de capítulos.
Mesmo quando se estreia com alguma frente, uma vez no ar, dias inteiros de serviço se esvaem em instantes. Só o nível industrial de programação garante o passaporte para a rotina do público. O resto é esquecimento.
Para atingir o poder de penetração de uma novela das 9, são servidos 3 600 segundos de dramaturgia na hora da janta, diariamente. É um feito tão impressionante quanto bater o recorde da colheita de soja. Os trinta minutos de exibição do seriado Tapas e Beijos, todas as terças-feiras, requerem uma jornada de dez horas durante quatro dias da semana. Isso sem contar a redação, a preparação, a montagem, a finalização e os efeitos.
Como todo operário de linha de produção em série, os profissionais de TV se ressentem do esforço da repetição. Dores localizadas, mau humor e cansaço são alguns dos sintomas aparentes. Desesperar-se é a pior escolha, para si mesmo e para os que terão de aguentá-lo em volta.
Deve-se manter a leveza. Pensar em Chaplin apertando, com a chave de boca, os botões na saia da fiscal da fábrica.
Tive uma experiência catastrófica em Selva de Pedra. Assustada com o peso da labuta da heroína das 8, amarrei uma tromba da qual me envergonho há 25 anos. A marcha de Tapas e Beijos é menos estafante do que a de um folhetim, mas nem por isso branda.
Os textos são enxutos e decorar não é problema; mas a linguagem é decupada. Trocamos a posição das duas câmeras e da luz dezenas de vezes por dia. O ator permanece em constante estado de atenção, entre a ação e a espera de ser chamado. A cada tomada, é concedido um intervalo grande o suficiente para um telefonema, um e-mail e um retoque na maquiagem.
No começo, eu telefonava muito; depois, passei a jogar gamão no celular. Não demorou, a jogatina virou um vício aborrecido.
O figurino nos arrumou umas bolsas de algodão para guardar os textos e os objetos pessoais. Um dia, combinei de bordar as sacolas com Andréa Beltrão, minha parceira de empreitada. Munidas de linha, agulha e bastidor, descobrimos uma obsessão criativa na medida certa dos entreatos.
Não é possível ler em um set de filmagem, nem aprender violão. Não é possível desenhar, tampouco escrever. A pequena compulsão manual ajuda a apaziguar a cabeça. Acredito no seu potencial para dar jeito em ansiedade, fobia, mania e até tabagismo.
Exige-se da bordadeira a paciência do ponto, e só. O efeito do conjunto virá com a dedicação e o tempo. Um painel da sua idiossincrasia.
Meu saco de textos já está quase tomado de um lado e tenho até o início de dezembro para concluir o outro. Quando terminar, faço a fantasia de que, fora o personagem, razão de ser do meu ofício, entrarei de férias com um testemunho pessoal do ano que passei ali.
Minha avó Ilda, maranhense da Rua do Sol, era uma menina selvagem até vir para o Rio, casar e se mudar com o marido médico e político para Guaçuí, uma cidadezinha no interior do Espírito Santo. Ilda era uma inconformada conformada com a sua posição de mulher. Se tivesse nascido em outras épocas, teria aproveitado bem mais.
Mestra em crochê, tecia rendas com linha de costura e agulhas microscópicas. Guardo uma veste extraordinária, brocada, mistura de Erté com Ernesto Neto, feita por ela a mão. No crochê, Ilda punha em prática a sua sanidade artística.
Nos dois meses de filmagem de Casa de Areia, na aridez dos Lençóis Maranhenses, a pintura foi meu escapismo. Os intervalos são longos em cinema. Guardo comigo os quadrinhos mal pintados. Eles são a lembrança mais real que possuo da aventura que vivi com minha família na terra natal de minha avó paterna.
Li no jornal que a doutora Nise da Silveira foi transferida para a ala de terapia ocupacional do manicômio em que trabalhava por ter se desentendido com a direção. Não sei se é verdade. Se for, bendita geladeira. No setor mais caseiro da psiquiatria, Nise desenvolveu sua pesquisa e trouxe à luz Arthur Bispo do Rosário.
Santo ponto de cruz!
Mesmo quando se estreia com alguma frente, uma vez no ar, dias inteiros de serviço se esvaem em instantes. Só o nível industrial de programação garante o passaporte para a rotina do público. O resto é esquecimento.
Para atingir o poder de penetração de uma novela das 9, são servidos 3 600 segundos de dramaturgia na hora da janta, diariamente. É um feito tão impressionante quanto bater o recorde da colheita de soja. Os trinta minutos de exibição do seriado Tapas e Beijos, todas as terças-feiras, requerem uma jornada de dez horas durante quatro dias da semana. Isso sem contar a redação, a preparação, a montagem, a finalização e os efeitos.
Como todo operário de linha de produção em série, os profissionais de TV se ressentem do esforço da repetição. Dores localizadas, mau humor e cansaço são alguns dos sintomas aparentes. Desesperar-se é a pior escolha, para si mesmo e para os que terão de aguentá-lo em volta.
Deve-se manter a leveza. Pensar em Chaplin apertando, com a chave de boca, os botões na saia da fiscal da fábrica.
Tive uma experiência catastrófica em Selva de Pedra. Assustada com o peso da labuta da heroína das 8, amarrei uma tromba da qual me envergonho há 25 anos. A marcha de Tapas e Beijos é menos estafante do que a de um folhetim, mas nem por isso branda.
Os textos são enxutos e decorar não é problema; mas a linguagem é decupada. Trocamos a posição das duas câmeras e da luz dezenas de vezes por dia. O ator permanece em constante estado de atenção, entre a ação e a espera de ser chamado. A cada tomada, é concedido um intervalo grande o suficiente para um telefonema, um e-mail e um retoque na maquiagem.
No começo, eu telefonava muito; depois, passei a jogar gamão no celular. Não demorou, a jogatina virou um vício aborrecido.
O figurino nos arrumou umas bolsas de algodão para guardar os textos e os objetos pessoais. Um dia, combinei de bordar as sacolas com Andréa Beltrão, minha parceira de empreitada. Munidas de linha, agulha e bastidor, descobrimos uma obsessão criativa na medida certa dos entreatos.
Não é possível ler em um set de filmagem, nem aprender violão. Não é possível desenhar, tampouco escrever. A pequena compulsão manual ajuda a apaziguar a cabeça. Acredito no seu potencial para dar jeito em ansiedade, fobia, mania e até tabagismo.
Exige-se da bordadeira a paciência do ponto, e só. O efeito do conjunto virá com a dedicação e o tempo. Um painel da sua idiossincrasia.
Meu saco de textos já está quase tomado de um lado e tenho até o início de dezembro para concluir o outro. Quando terminar, faço a fantasia de que, fora o personagem, razão de ser do meu ofício, entrarei de férias com um testemunho pessoal do ano que passei ali.
Minha avó Ilda, maranhense da Rua do Sol, era uma menina selvagem até vir para o Rio, casar e se mudar com o marido médico e político para Guaçuí, uma cidadezinha no interior do Espírito Santo. Ilda era uma inconformada conformada com a sua posição de mulher. Se tivesse nascido em outras épocas, teria aproveitado bem mais.
Mestra em crochê, tecia rendas com linha de costura e agulhas microscópicas. Guardo uma veste extraordinária, brocada, mistura de Erté com Ernesto Neto, feita por ela a mão. No crochê, Ilda punha em prática a sua sanidade artística.
Nos dois meses de filmagem de Casa de Areia, na aridez dos Lençóis Maranhenses, a pintura foi meu escapismo. Os intervalos são longos em cinema. Guardo comigo os quadrinhos mal pintados. Eles são a lembrança mais real que possuo da aventura que vivi com minha família na terra natal de minha avó paterna.
Li no jornal que a doutora Nise da Silveira foi transferida para a ala de terapia ocupacional do manicômio em que trabalhava por ter se desentendido com a direção. Não sei se é verdade. Se for, bendita geladeira. No setor mais caseiro da psiquiatria, Nise desenvolveu sua pesquisa e trouxe à luz Arthur Bispo do Rosário.
Santo ponto de cruz!
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