quinta-feira, setembro 08, 2011

EUGÊNIO BUCCI - Uma lápide para os terroristas


Uma lápide para os terroristas
EUGÊNIO BUCCI
O Estado de S.Paulo - 08/09/11

Dez anos após os atentados da Al-Qaeda contra os Estados Unidos, prossegue aberto um imenso vazio que desafia a chamada civilização ocidental. As torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, cada uma delas atingida por um jato comercial (aviões de carreira transformados em mísseis), derreteram como velas de parafina, numa imagem que será lembrada com horror por séculos e séculos. Só ali morreram 2.605 cidadãos de várias nacionalidades. Naquele mesmo dia, o Pentágono sofreu um bombardeio semelhante. Outras 125 mortes. Um quarto avião, sequestrado pelo mesmo grupo criminoso, caiu na Pensilvânia antes de alcançar seu alvo. Nesses voos estavam embarcados 246 passageiros. Ao todo, 2.976 vidas humanas foram queimadas. Por aí temos uma primeira visão do vazio - e essa primeira visão é relativamente simples.

No lugar das torres gêmeas restou outra face do mesmo vazio: 65 mil metros quadrados de escombros, conforme expôs, com infográficos de um nível de minúcia que seria barroco se não fosse exato, o excelente caderno publicado por este jornal no domingo. A limpeza dos entulhos consumiu quase um ano de trabalho. Ao final restou na Ilha de Manhattan uma cicatriz urbanística: o Marco Zero. Lá serão plantados um museu e um memorial, cuja inauguração foi marcada para 2015. As obras custarão US$ 11 bilhões. O vazio será então convertido em túmulo coletivo, um cemitério exponencial. As vítimas terão sua lápide.

Esse traço particularíssimo, o de inscrever um símbolo para tapar a dor insuportável da morte, vem servindo de pretexto para que nós, os humanos, nos julguemos superiores aos outros animais. Somos humanos porque, quando os arqueólogos aparecem para vasculhar os resquícios de nossa existência, encontram isto: urnas funerárias, esqueletos ao lado de amuletos em vasos de cerâmica, pirâmides devidamente faraônicas, valas comuns, memoriais patrióticos. O resto é conversa. O resto é linguagem. Quando não há mais remédio, é nosso instinto pôr uma pedra em cima e tocar adiante, mesmo que a pedra custe US$ 11 bilhões - e mesmo que tocar adiante signifique ir longe, muito longe, em busca de vingança, ainda mais dispendiosa.

As operações militares que se seguiram ao 11 de setembro, com a invasão do Afeganistão e do Iraque, além de ações no Paquistão, já mataram 6 mil soldados das tropas americanas e aliadas. Segundo estimativas "conservadoras" da Brown University, citada pela revista britânica The Economist da semana passada, 137 mil civis morreram nesses três países e os gastos atingem a casa dos US$ 4 trilhões. Além de vidas e dinheiro, a vingança impôs também o custo da mentira. A própria The Economist admite, na mesma edição, que deu seu apoio à invasão do Iraque somente porque estava "erroneamente convencida de que Saddam possuía armas de destruição em massa". Assim como outros veículos jornalísticos, acreditou em informações falsas difundidas por autoridades americanas.

Se a verdade atrapalha a revanche, que se mate a verdade. Para poder declarar que os mortos descansarão em paz o poder agredido não tem outra saída que não seja construir o espetáculo da vingança. No futuro próximo, a guerra contra o terror será compreendida menos como uma sequência de movimentos parametrados pela geopolítica (e nesse quesito o saldo é medíocre) e mais como reação da ordem do espetáculo, com a finalidade de promover a coesão imaginária entre o medo e o ódio. Rigorosamente, George W. Bush foi impelido a isso: tinha de revidar, e revidar com um dispêndio de energia espetacular equivalente ao que vitimou o espaço público americano.

Mais que atos de guerra, os atentados de 11 de setembro foram concebidos como cenas midiáticas de perversidade nunca vista. As duas torres derretendo, ao vivo, nas televisões do mundo todo, sangraram o olhar da humanidade. Naquele momento sumiu da paisagem um ícone que se imaginava inamovível - como cartão-postal e como âncora do mercado financeiro global. Abriu-se o chão. Nós, os bilhões de humanos que testemunhamos o desmoronar dos dois arranha-céus, passamos a ser, de uma hora para outra, mutilados do olhar, como se fôssemos mutilados de guerra. Eis o que situa os atentados de 11 de setembro em outra era histórica, ou melhor, o que faz deles o portal de ingresso da História em outra era, em que a guerra e o terror, também eles, passam a ser definitivamente mediados pela instância da imagem ao vivo.

Por isso a resposta do governo americano só poderia ser, como vem sendo, uma sucessão de golpes espetaculares - que, quando perdem o tônus, mudam de alvo como se mudassem de figurino. A complexa engenharia simbólica para tapar o vazio deixado pelos mortos e pelos escombros depende desses golpes espetaculares. Segundo a ilusão feérica de que a vingança trará a paz, o teatro da guerra já não basta - só a guerra teatral poderá erguer uma sepultura para as perdas físicas e simbólicas.

Acontece que a ilusão não passa disso, de ilusão. Além dela, o vazio, outra vez ele, mostra o seu avesso - este, sim, aterrorizante. As vítimas dos atentados de 11 de setembro de 2001 terão sua morte ritualizada pelo espetáculo, mas os terroristas permanecerão insepultos, exilados no avesso do vazio. Bin Laden foi morto por soldados americanos porque não tinha onde ser encarcerado e julgado neste mundo. Como ele, os criminosos inomináveis que pilotaram os aviões de carreira, e que também morreram em 11 de setembro, não terão uma lápide visível, minimamente humana. Não há notícias de que terão uma cova neste formidável cemitério que é o planeta Terra.

Se não há ritos fúnebres para todos, não há paz. Se não sabemos sepultar dignamente esses homens, a nossa civilização é menor do que precisa ser e continuará escrava do desejo (espetacular) de fazer com que desapareçam para sempre.

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