À sombra de Jabotinsky
DEMÉTRIO MAGNOLI
O ESTADÃO - 29/09/11
Perante a ONU, Mahmoud Abbas disse que o reconhecimento do Estado Palestino equivaleria a fazer mais uma "Primavera Árabe". A verdade é exatamente o inverso: a iniciativa tem o propósito de evitar uma "Primavera Árabe", desviando a frustração popular nos territórios ocupados para a esfera da diplomacia internacional. Contudo, como tantas outras coisas, o plano pode ter consequências indesejadas, deflagrando precisamente a revolta que almeja impedir.
Na sua resposta, Benjamin Netanyahu lançou sobre Abbas a responsabilidade pelo fracasso das negociações de paz, invocando seu pretexto predileto: os palestinos recusam-se a reconhecer Israel como "Estado judeu". A verdade é que a OLP reconhece oficialmente Israel desde os Acordos de Oslo, de 1993, e o pedido palestino encaminhado à ONU representa tanto o reconhecimento das fronteiras anteriores a 1967 quanto uma renúncia definitiva aos territórios palestinos perdidos na guerra de 1948. Entretanto, nenhuma liderança palestina pode cumprir o requisito maximalista de Netanyahu, pois um quinto dos cidadãos israelenses não são judeus, mas palestinos.
Não se reconhece o Irã como "Estado islâmico" ou Cuba como "Estado socialista", mas apenas como Estados soberanos. Quando se firmaram os Acordos de Oslo, ninguém exigiu da OLP o que agora reclama o chefe de governo de Israel. Definir a natureza de Israel não compete aos palestinos, mas unicamente aos próprios israelenses, que sempre estiveram divididos acerca do complexo tema, com repercussões variadas sobre os direitos da minoria árabe e, também, sobre os privilégios legais dos judeus ortodoxos. Correntes radicais em Israel, com assento no Gabinete de governo, já propuseram cassar os direitos políticos da minoria não judaica. Ao demandar o reconhecimento de Israel como "Estado judeu", Netanyahu exige algo duplamente impossível: que a OLP coloque um selo de legitimidade sobre a expulsão dos palestinos de suas terras na guerra de 1948 e que admita a hipótese de supressão da cidadania da minoria árabe-israelense. O primeiro-ministro sabe disso - e exatamente por saber insiste na exigência.
O sionismo atravessou três etapas distintas tentando responder à espinhosa questão da soberania sobre a Terra Santa. No início, elegeu o caminho de negar a presença física e a existência política de árabes palestinos na Palestina. A negação expressava-se no lema da "terra sem povo para um povo sem terra" e na figuração dos habitantes daquelas terras como nômades do deserto. Na etapa seguinte, que coincide com a guerra de 1967, a presença física palestina já não era passível de negação, mas se rejeitava a existência nacional dos palestinos. A Jordânia, dizia a líder israelense Golda Meir, era o Estado Palestino. Uma etapa final, marcada pela ocupação dos territórios palestinos e pela intifada, propiciou um choque de realidade. "Há dois povos e duas bandeiras na Terra Santa", declarou Shimon Peres na hora dos Acordos de Oslo.
O impasse atual decorre da escolha do governo de Netanyahu de passar uma borracha sobre o aprendizado de seus predecessores. O primeiro-ministro é um herdeiro da tradição sionista, mas a sua maioria parlamentar se ergue sobre um componente estranho a essa tradição: o Yisrael Beitenu, do ministro do Exterior, Avigdor Lieberman. Baseado nos imigrantes recentes oriundos da antiga URSS, o partido não reflete a experiência histórica israelense, mas uma cisão do sionismo anterior à fundação do Estado judeu. Sua fonte doutrinária se encontra no pensamento de Zev Jabotinsky, que, há 90 anos, imaginou Israel como uma federação judaico-árabe dirigida pelos judeus no conjunto indivisível da Terra Santa. A visão de Jabotinsky, uma relíquia resgatada das águas do passado, norteia a política oficial do Estado de Israel.
Uma crise devastadora atravessa o sionismo. A coalizão governista, formada pela aliança do Likud com o Partido Trabalhista, subordina-se voluntariamente à orientação anacrônica de Lieberman, que torna inviável a solução da paz pela divisão da Terra Santa em dois Estados. Há pouco, o ex-primeiro-ministro Ehud Olmert pediu a reabertura urgente das negociações com Abbas e alertou sobre as consequências desastrosas da política oficial: "Os futuros líderes palestinos podem abandonar a ideia de dois Estados e buscar uma solução de Estado único, tornando impossível a reconciliação".
Não foi o respeito aos direitos dos palestinos, mas as realidades da geopolítica e da demografia que conduziram o sionismo à "ideia de dois Estados". Hoje, no conjunto Israel-Palestina, a população árabe-palestina supera a judaica. O Estado de Israel só pode conservar a ocupação dos territórios palestinos mediante a supressão permanente dos direitos políticos da maioria da população da região - ou seja, por meio de um regime de apartheid incompatível com os princípios admitidos pela comunidade internacional. Olmert está dizendo que a solução dos dois Estados é a única capaz de preservar Israel como Estado judeu e democrático. E, ainda, que Netanyahu representa uma ameaça concreta ao ideal sionista sobre o qual Israel se constituiu.
Jabotinsky não almejava um Estado judeu, mas um Estado único dirigido pelos judeus. A OLP acalentou por algum tempo o sonho de um Estado único dirigido pelos palestinos, mas acabou aceitando a "ideia de dois Estados". Uma ideia, contudo, não perdura eternamente. Sob o impacto combinado da desmoralização do processo de paz, das revoluções populares árabes e do isolamento regional de Israel, os palestinos podem desistir da miragem de um Estado nacional nas fronteiras anteriores a 1967. Nessa hipótese, eles seguiriam o exemplo dos negros sul-africanos e passariam a exigir direitos iguais de cidadania para todos os habitantes do conjunto Israel-Palestina. Acomodado à sombra de Jabotinsky, Netanyahu empurra-os rumo à opção do Estado único.
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