Crime quase sem castigo
O GLOBO - 11/09/11
De 1.053 motoristas presos em dois anos e meio em blitzes da Lei Seca por consumo de bebida alcoólica, apenas seis foram condenados.
Elenilce Bottari
Desde o início das fiscalizações diárias de combate à embriaguez no trânsito, há dois anos e meio, a Operação Lei Seca já parou mais de meio milhão de motoristas no estado. Até o dia 15 de agosto, foram 415.678 só na capital. Desse total, 1.211 foram presos em flagrante por beber acima do limite permitido por lei e processados na Justiça. Mas interpretações antagônicas da lei e da legalidade das operações estão criando um perigoso desvio para a impunidade.
O GLOBO teve acesso ao andamento de 1.053 processos criminais abertos entre março de 2009 e junho deste ano, na maioria, contra pessoas flagradas em blitzes. Apesar da grande quantidade de ações, apenas seis delas acabaram em condenações por embriaguez ao volante. Criada para tentar frear a epidemia de acidentes que, só em 2008, vitimou 43.193 pessoas no estado, a lei federal 11.705/2008 (que transformou em crime o ato de dirigir embriagado) e, consequentemente, a Operação Lei Seca conquistaram apoio popular ao reduzir os índices de morte no trânsito. Mas a unanimidade que se vê nas ruas se desfaz nos tribunais, no momento da responsabilização criminal.
A legislação brasileira garante ao réu primário o benefício da suspensão condicional do processo nos crimes em que a pena mínima for igual ou inferior a um ano, — caso da Lei Seca. Em respeito a esse princípio, dos 1.053 processos pesquisados pelo GLOBO, 384 tratavam de suspensões condicionais de denúncias recebidas pela Justiça, contra outras 120 denúncias rejeitadas. Havia ainda 50 absolvições e 50 trancamentos de processos, em recursos às câmaras criminais. O restante dos processos ainda estava em fase de denúncia ou já tinha sido arquivado em definitivo, por cumprimento de suspensão condicional, por não localização do réu ou por inépcia da denúncia.
Além de dividir magistrados, a Lei Seca trouxe um efeito colateral para as ações que apuram embriaguez em acidentes de trânsito. Agora, é crime dirigir com um volume de álcool igual ou superior a seis decigramas por litro de sangue ou superior a três décimos de miligrama por litro expelido dos pulmões (cerca de dois copos de cerveja). Diante disso, a tendência no Tribunal de Justiça tem sido a de cobrar o teste do bafômetro ou o exame de sangue, como prova fundamental.
Como todos têm o direito de não produzir provas contra si mesmos — como prevê o artigo V da Constituição Federal — , aqueles que estão realmente bêbados não se submetem ao teste do bafômetro e acabam sendo absolvidos. É o que mostra uma sentença da 17a- Vara Criminal da capital. Segundo denúncia, no dia 21 de dezembro de 2008, por volta de 10h, na Rua Honório, em Todos os Santos, um motorista conduzia seu Fiat Doblò na contramão quando bateu num Astra. O motorista apresentava “hálito etílico, equilíbrio e coordenação motora prejudicados e desorientação”, conforme constatado por peritos. Mesmo assim, foi absolvido do crime previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
“O tipo penal previsto no art. 306 da referida lei exige expressamente que o agente esteja com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas, o que somente pode ser aferido através de exames específicos, seja o de sangue, seja o etilômetro, e não através de presunção em razão do hálito, falta de equilíbrio ou coordenação motora”, diz a decisão.
“Assim, ausente o exame que pudesse constatar a concentração de álcool, não se preenchem todos os elementos do tipo, não havendo, portanto, a materialidade do delito. Isto posto, rejeito a denúncia.” Esse entendimento do TJ virou regra entre os motoristas parados nas operações.
Na madrugada de 6 de maio passado, durante uma blitz no Aterro do Flamengo, um médico visivelmente embriagado deu um cavalo de pau e fugiu pela contramão para tentar escapar de uma blitz da Lei Seca. Detido mais adiante, ele se recusou a fazer o teste do bafômetro e adormeceu antes mesmo de receber as multas. No carro, os policiais encontraram uma garrafa de vodca.
— Pelo menos, ele não vai mais oferecer riscos a ninguém hoje — comentou um policial. Enquanto um servidor anotava os dados do médico, outro fazia o teste do bafômetro no estudante Adriano Gonçalves. O jovem foi preso em flagrante, com índice de 0,53 ml/l expelido dos pulmões (cerca de uma garrafa de cerveja) e levado para a 12a- DP (Copacabana), onde ficou por toda a noite até de manhã, quando finalmente o banco abriu e ele pôde retirar R$ 308 para pagar a fiança:
— Eu nem ia beber, mas acabei aceitando tomar três copos de cerveja com o pessoal da faculdade. Achei que estava bem e que poderia soprar no bafômetro. Agora, não vou dormir e ainda corro o risco de chegar atrasado e perder o emprego. Na madrugada do feriado de 7 de setembro, um motociclista parou numa blitz na esquina da Avenida General San Martin com a Bartolomeu Mitre, no Leblon. Com a voz embargada, ele contou a um policial que havia bebido, mas não precisava fazer o teste porque afinal estava na garupa da moto. — Mas o senhor está sozinho. Então onde está o condutor? — reagiu o policial. — Sei lá, só sei que estou na garupa. Como o condutor fantasma não apareceu, além de ter a carteira apreendida e de ser multado, o motociclista teve o veículo rebocado.
— Hoje, só são presas as pessoas de boa fé. Os motoristas embriagados se recusam a fazer o teste, porque sabem que vão ser presos, e acabam respondendo apenas administrativamente — contou o delegado Antenor Lopes, da 12a- DP. Dos 24 presos levados à delegacia este ano, o motorista mais bêbado havia consumido 0,76 ml/l (cerca de uma garrafa e meia de cerveja).
Elenilce Bottari
Desde o início das fiscalizações diárias de combate à embriaguez no trânsito, há dois anos e meio, a Operação Lei Seca já parou mais de meio milhão de motoristas no estado. Até o dia 15 de agosto, foram 415.678 só na capital. Desse total, 1.211 foram presos em flagrante por beber acima do limite permitido por lei e processados na Justiça. Mas interpretações antagônicas da lei e da legalidade das operações estão criando um perigoso desvio para a impunidade.
O GLOBO teve acesso ao andamento de 1.053 processos criminais abertos entre março de 2009 e junho deste ano, na maioria, contra pessoas flagradas em blitzes. Apesar da grande quantidade de ações, apenas seis delas acabaram em condenações por embriaguez ao volante. Criada para tentar frear a epidemia de acidentes que, só em 2008, vitimou 43.193 pessoas no estado, a lei federal 11.705/2008 (que transformou em crime o ato de dirigir embriagado) e, consequentemente, a Operação Lei Seca conquistaram apoio popular ao reduzir os índices de morte no trânsito. Mas a unanimidade que se vê nas ruas se desfaz nos tribunais, no momento da responsabilização criminal.
A legislação brasileira garante ao réu primário o benefício da suspensão condicional do processo nos crimes em que a pena mínima for igual ou inferior a um ano, — caso da Lei Seca. Em respeito a esse princípio, dos 1.053 processos pesquisados pelo GLOBO, 384 tratavam de suspensões condicionais de denúncias recebidas pela Justiça, contra outras 120 denúncias rejeitadas. Havia ainda 50 absolvições e 50 trancamentos de processos, em recursos às câmaras criminais. O restante dos processos ainda estava em fase de denúncia ou já tinha sido arquivado em definitivo, por cumprimento de suspensão condicional, por não localização do réu ou por inépcia da denúncia.
Além de dividir magistrados, a Lei Seca trouxe um efeito colateral para as ações que apuram embriaguez em acidentes de trânsito. Agora, é crime dirigir com um volume de álcool igual ou superior a seis decigramas por litro de sangue ou superior a três décimos de miligrama por litro expelido dos pulmões (cerca de dois copos de cerveja). Diante disso, a tendência no Tribunal de Justiça tem sido a de cobrar o teste do bafômetro ou o exame de sangue, como prova fundamental.
Como todos têm o direito de não produzir provas contra si mesmos — como prevê o artigo V da Constituição Federal — , aqueles que estão realmente bêbados não se submetem ao teste do bafômetro e acabam sendo absolvidos. É o que mostra uma sentença da 17a- Vara Criminal da capital. Segundo denúncia, no dia 21 de dezembro de 2008, por volta de 10h, na Rua Honório, em Todos os Santos, um motorista conduzia seu Fiat Doblò na contramão quando bateu num Astra. O motorista apresentava “hálito etílico, equilíbrio e coordenação motora prejudicados e desorientação”, conforme constatado por peritos. Mesmo assim, foi absolvido do crime previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
“O tipo penal previsto no art. 306 da referida lei exige expressamente que o agente esteja com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas, o que somente pode ser aferido através de exames específicos, seja o de sangue, seja o etilômetro, e não através de presunção em razão do hálito, falta de equilíbrio ou coordenação motora”, diz a decisão.
“Assim, ausente o exame que pudesse constatar a concentração de álcool, não se preenchem todos os elementos do tipo, não havendo, portanto, a materialidade do delito. Isto posto, rejeito a denúncia.” Esse entendimento do TJ virou regra entre os motoristas parados nas operações.
Na madrugada de 6 de maio passado, durante uma blitz no Aterro do Flamengo, um médico visivelmente embriagado deu um cavalo de pau e fugiu pela contramão para tentar escapar de uma blitz da Lei Seca. Detido mais adiante, ele se recusou a fazer o teste do bafômetro e adormeceu antes mesmo de receber as multas. No carro, os policiais encontraram uma garrafa de vodca.
— Pelo menos, ele não vai mais oferecer riscos a ninguém hoje — comentou um policial. Enquanto um servidor anotava os dados do médico, outro fazia o teste do bafômetro no estudante Adriano Gonçalves. O jovem foi preso em flagrante, com índice de 0,53 ml/l expelido dos pulmões (cerca de uma garrafa de cerveja) e levado para a 12a- DP (Copacabana), onde ficou por toda a noite até de manhã, quando finalmente o banco abriu e ele pôde retirar R$ 308 para pagar a fiança:
— Eu nem ia beber, mas acabei aceitando tomar três copos de cerveja com o pessoal da faculdade. Achei que estava bem e que poderia soprar no bafômetro. Agora, não vou dormir e ainda corro o risco de chegar atrasado e perder o emprego. Na madrugada do feriado de 7 de setembro, um motociclista parou numa blitz na esquina da Avenida General San Martin com a Bartolomeu Mitre, no Leblon. Com a voz embargada, ele contou a um policial que havia bebido, mas não precisava fazer o teste porque afinal estava na garupa da moto. — Mas o senhor está sozinho. Então onde está o condutor? — reagiu o policial. — Sei lá, só sei que estou na garupa. Como o condutor fantasma não apareceu, além de ter a carteira apreendida e de ser multado, o motociclista teve o veículo rebocado.
— Hoje, só são presas as pessoas de boa fé. Os motoristas embriagados se recusam a fazer o teste, porque sabem que vão ser presos, e acabam respondendo apenas administrativamente — contou o delegado Antenor Lopes, da 12a- DP. Dos 24 presos levados à delegacia este ano, o motorista mais bêbado havia consumido 0,76 ml/l (cerca de uma garrafa e meia de cerveja).
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