Um legado de valores
GAUDÊNCIO TORQUATO
O Estado de S.Paulo - 03/04/11
Pergunta da semana: qual o legado que deixa José Alencar, o ex-vice-presidente da República? Na linguagem corrente, o conceito de legado abriga diversos significados: herança política, acervo de princípios, traços de personalidade, exemplos de atitudes e comportamentos. No caso desse mineiro, que travou uma luta de 13 anos contra um câncer, o legado político se esvai com seu desaparecimento. Permanece, porém, o legado valorativo, que salta aos olhos na trajetória vitoriosa de um brasileiro que, de balconista de loja de tecidos, construiu, tijolo a tijolo, um dos mais sólidos empreendimentos empresariais do País. Nesse percurso, o ator político tira a máscara e se mostra real, um ser humano com alegrias e aflições. Para início de conversa, não tinha papas na língua. Percorria, muitas vezes, a contramão na estrada do governo de que fazia parte. Exercia a vanguarda da defesa da obra governamental, mas brandia as armas da crítica contra a política de juros. A aparente contradição não diminuiu a lealdade, a colaboração e o entusiasmo que demonstrava pela administração comandada pelo companheiro de chapa, Luiz Inácio.
O vedetismo no poder procura seduzir mais que convencer, encantar mais que argumentar, iludir mais que cair na real. Daí se explicar a propensão para o Estado desenvolver certo "autismo", um mergulho voltado para si mesmo, acentuado quando as rédeas do governo são guiadas por um perfil carismático que se imagina onipotente e onisciente, como Lula. Zé Alencar, com sua humanidade, simbolizava o mundo real, ao escancarar a luta contra o mal que o afligia, e também ao não economizar palavras contra os altos juros. Matreiro e perspicaz, o ex-vice fugia das tramas de Narciso, não se deixando colher na armadilha do próprio reflexo. Quebrava com insistência o espelho do poder. Conseguiu o dom de ser ouvido, respeitado e aplaudido não por firulas da política, mas por cultivar valores cuja síntese pode ser expressa nesta lição: "Não tenho medo da morte, mas da desonra".
O legado de José Alencar não aparece no terreno da política tradicional, mas no plano dos princípios. Se não tem herdeiros políticos, deixa impresso nas páginas da História um curto dicionário de valores, alguns não muito prezados pelos atores políticos: transparência, coragem, lealdade, determinação. Na vida pública, transparência é um conceito-chave. A História ilustra casos de personagens que sofreram muito por esconder suas doenças. John Kennedy padecia intensamente da coluna vertebral, por ter sido ferido nas costas durante a 2.ª Guerra. Usava um colete dorsal de 20 cm. Estampa jovial da América, controlava as dores para exibir um permanente sorriso. Na França, François Mitterrand assumiu a presidência, em 1981, nunca revelando a doença (câncer na próstata) de que padecia. Resistiu 15 anos. Já na Inglaterra, o rei George VI, ao enfrentar publicamente a gagueira e a timidez, ganhou a simpatia da opinião pública.
Entre nós, uma luz fosca sempre envolveu os governantes. A enfermidade do marechal Costa e Silva - crise circulatória com manifestações neurológicas -, divulgada sob muita opacidade, abriu uma crise. Seu vice, Pedro Aleixo, cedeu lugar a uma junta militar. O ex-senador Petrônio Portela seria o candidato civil da ditadura militar, em 1986, para presidente da República. Escondeu o enfarte quando visitava Campina Grande (PB). Desembarcou em Brasília, onde morreu horas depois. Era sabido que Orestes Quércia padecia de um câncer, que sempre procurou ocultar. Até sua saída da última campanha para o Senado, no ano passado, foi envolta em mistério. E quem não se lembra de Tancredo Neves, sorridente, sentado na cadeira e rodeado de médicos, já perto de morrer? Envoltos num grande cobertor de silêncio, todos, mais cedo ou mais tarde, tiveram seus casos desvendados. O mistério não os ajudou em nada.
Apresentar-se saudável, robusto, jovial é a orientação dos profissionais que manejam as armas do marketing. Tolice. Os fios da verdade sempre se desdobram aos olhos da opinião pública. Por vezes, a emenda sai pior que o soneto. O espetáculo em torno da robustez pode ser estratagema para esconder outras coisas. Quem não se recorda da imagem de um presidente no cooper diário, voando em jatos supersônicos, dormindo em cabanas de lona no meio da floresta, fazendo estripulias que causavam impressão às turbas? Deu no que deu. Há um ditado espanhol que reza: "No meio da mentira encontrarás a verdade". Ou, para usar a imagem bíblica, "o homem não é capaz de acrescentar um palmo à sua altura e, desse modo, alterar a modelagem que o Senhor dos Céus lhe deu". Zé Alencar intuía tal sabedoria ao estraçalhar a caricatura espalhafatosa que a mídia produz do homem público. No planalto ou na planície, via-se um cidadão determinado a conter o ímpeto de suas mazelas. Isso contribuiu, seguramente, para angariar simpatia para o governo. O Zé, cheio de humanidade, acabava abrindo outras portas para Lula. Serviu como aríete para quebrar resistências do empresariado. A determinação de percorrer as estações do calvário (17 intervenções cirúrgicas) fazia crer, em certos momentos, que ele, ufa!, encontrara a poção mágica para exterminar uma das maiores desgraças do planeta.
Há, pois, um legado a medir na planilha de vida de José Alencar Gomes da Silva, nascido em Itamuri, município de Muriaé, Minas Gerais. Consiste essencialmente na ideia de que o homem simples vive como respira, sem maiores esforços nem glórias, sem maiores efeitos nem vergonha. O homem comum é aquele que sabe que as casas são construídas para dentro delas se viver, e não para serem admiradas por fora. A simplicidade, arremata André Comte-Sponville, é a vida sem frases de efeito, sem mentiras, sem exageros e sem grandiloquência. É a virtude dos sábios e a sabedoria dos santos. No ciclo de tormentas por que passa nossa política, quem as atravessa incólume faz a diferença.
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