Desde 1889, sob a forma de República Federativa, formada pela união indissolúvel dos Estados, dos municípios e do Distrito Federal, o governo passou a ser exercido no Brasil por três Poderes, independentes e harmônicos entre si: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Nenhum deles pode sobrepor-se aos outros. Essa é a essência do chamado sistema presidencialista, que o País adotou da noite para o dia, num equívoco imperdoável, logo após a surpreendente Proclamação da República. O idealizador desse sistema foi Montesquieu, mas foi nos EUA que ele encontrou seu solo mais fértil. O sistema presidencialista ajustava-se à realidade americana: a nova nação surgia sob a forma de Federação, unindo os Estados, que lutaram juntos para conquistar a independência, na hora de governar. Vale lembrar que os fundadores da nova pátria rejeitavam tanto a Coroa quanto seus usos e costumes. Mesmo antes da independência eles já praticavam a democracia, com eleições livres para quase tudo e permanente respeito pelas minorias. Na monumental obra de Tocqueville é possível perceber, desde aquela época, a enorme diferença entre o que se passava por lá e o que se passava por aqui. Dá para entender as causas da fragilidade do nosso presidencialismo, sempre tão exposto a caudilhos e ditadores, a rupturas do Estado de Direito e à permanente desarmonia entre os três Poderes. Nunca formamos uma Federação. E praticamos pouca democracia. Não temos pelas leis a mesma reverência que existe nos EUA.
É claro que eles não são uma nação de santos. Mas na cabeça deles, por uma herança cultural muito bem mantida, lei é lei. As escolhas que Barack Obama fez para compor seu governo passaram pelo crivo dos dois outros Poderes. Vimos seus candidatos submetidos a duras exigências, que aqui jamais seriam apresentadas. Graças a esse apego à lei, a Constituição americana jamais foi desrespeitada ou trocada. As poucas emendas aprovadas mantiveram todo o espírito do texto fundamental, estabelecido há mais de dois séculos.
São enormes as diferenças entre o presidencialismo deles e o nosso. Lá, quando o Congresso vota o Orçamento, é para valer. Aqui, ele é apenas autorizativo. Lá, quando um tribunal emite uma sentença, é para ser cumprida. Aqui, ela é apenas comprida... E não precisa ser obedecida.
No presidencialismo americano (o único respeitável do planeta), nenhum dos três Poderes tem como afrontar os outros. Lá, por mais carismático e bem votado que seja, o presidente não é imperador...
Aqui, estamos vivendo período extremamente perigoso, imperial demais para o meu gosto. Aliás, Três Poderes, em Brasília, só mesmo no nome da praça. E olhe lá! Porque, se for o caso de querer fazer obras nela, o Executivo chama "o arquiteto-mor, por testamento de Adão" para poder decidir. A capital é dele... Por tudo isso, dá para desconfiar da crescente e bem orquestrada desmoralização dos Poderes Legislativo e Judiciário. A medida provisória, à moda presidencialista, acabou com eles. O Poder Executivo reina absoluto entre nós. Qualquer presidente será sério, honesto e justo se quiser. Se não quiser, não importa. As leis são para os outros.
Ainda recentemente tivemos um exemplo. Valeu a pressão feita por prefeitos e governadores, em pleno período de crise, desemprego e queda da produção e do comércio: abriram-se os cofres para que S. Exas. possam ajudar na campanha presidencial, antecipada ilegalmente.
Mesmo assim, executivos públicos estão apavorados com as consequências que poderão sofrer com o não-pagamento dos precatórios. O generoso chefe não tem como anistiá-los! São dívidas definidas pelo Poder Judiciário. O Executivo gastou todos os trunfos para não pagar. Os processos arrastaram-se por décadas, mas os credores ganharam. O tribunal fez o cálculo e mandou pagar. Algumas dessas dívidas, reconhecidas e julgadas, esperam o pagamento há mais de 36 anos. Essa é a história de centenas de milhares de brasileiros. "E a lei?", pergunta o credor. "Que lei?", responde o devedor.
Em maio de 2000 foi votada a mais importante lei para o Brasil: a Lei de Responsabilidade Fiscal. Uma lei tipicamente republicana! Executivos passariam a sofrer penalidades, jurídicas e políticas, sempre que empurrassem dívidas para seus sucessores. Foi um pânico geral: o que fazer com os precatórios? Eles representam mais de 80% do endividamento público. E criam o risco de intervenção federal ou bloqueio de receitas. O Poder Judiciário vem julgando esse assunto com severidade. Vários municípios e Estados já sofreram o bloqueio de suas receitas. Vários casos de intervenção foram julgados. Foi, então, preciso salvá-los! Logo em setembro daquele ano, o Planalto enviou a PEC 30 ao Congresso. Aprovada, ela gerou, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o artigo 78 e seus parágrafos, para vigorarem até o fim de 2009. Essa data está chegando! Os devedores precisam, de novo, de um salva-vidas. Como? Apresentando a PEC 12, para mudar a PEC 30. Simples, não? Os parlamentares serviçais de sempre logo se mexeram. A PEC foi para o Senado e aprovada a toque de caixa, em meio à lama geral que atola aquela Casa. Agora, vão fazer de tudo na Câmara para manter o calote. Ele atinge quase meio milhão de credores. E alcança mais de R$ 100 bilhões!
Para anistiar os devedores sem afrontar os outros dois Poderes, o Executivo só tem uma saída: manter na PEC 12, sem alterá-los, o artigo 78 do ADCT e seus parágrafos. E criar, de forma clara, um fundo especial que ajude prefeituras, Estados e órgãos federais a pôr em dia essas dívidas. Se não o fizer, a PEC vai ser a Lei do Calote. Nesse caso, que mudem o nome da Praça dos Três Poderes para Praça do Calote. E ergam uma estátua em homenagem ao batedor de carteira.
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