Da tortura e suas imagens
Mauro Santayana
JORNAL DO BRASIL - 14/05/09
O presidente Obama recomendou aos seus assessores jurídicos que impeçam a divulgação de fotos de torturas, tomadas nas dependências das Forças Armadas, depois que o Pentágono a havia autorizado. Segundo a imprensa, a Casa Branca teme que a publicação faça aumentar o sentimento contra os Estados Unidos no mundo. É muito difícil que as fotos, por mais horripilantes sejam, possam espantar mais do que a proibição, exatamente por iniciativa de Obama, que nos trouxera a boa-nova da justiça. Trata-se de uma bofetada nos olhos de cada um de nós, que esperávamos outro tempo, em Washington e no mundo. Como costuma ocorrer na História, o presidente começa a assumir a face de seu predecessor.
É provável que ele não consiga impedir a divulgação, uma vez que os tribunais, a pedido da União Americana pelas Liberdades Civis, determinaram ao Pentágono a entrega das imagens à imprensa. Acredita o presidente que, ao conhecer as sempre invocadas razões de segurança nacional, os juízes reconsiderem a decisão. Ao mesmo tempo, o governo informa que já puniu os que praticaram tortura. Os grandes responsáveis foram os que autorizaram os atos nefandos: o presidente Bush e seu grupo texano, e os oficiais que transmitiram a ordem para os procedimentos ilegais. Eles, por enquanto, estão a salvo.
A tortura não é ato que se restrinja ao corpo e à alma do prisioneiro. É crime contra a vida em si mesma, contra a consciência do mundo, de que cada um de nós é portador. Já citamos, aqui, definição precisa de Hélio Pellegrino: é a tentativa de usar o corpo contra a alma, de servir-se da dor como cúmplice contra a mente, sede do espírito e da dignidade dos seres humanos. Conforme a opinião de eminentes psicanalistas, só as pessoas profundamente infelizes e desajustadas conseguem torturar. Elas detestam a própria vida – e passam a detestar a vida de modo geral.
Ao mesmo tempo em que se noticiava essa decisão de Obama, chegava a Munique o ucraniano John Demjanjuk, acusado de ter sido responsável pela morte de 29 mil judeus no campo de extermínio de Sobibor. O criminoso de guerra tem história singular: feito prisioneiro pelos nazistas em seu avanço sobre a URSS, passou a colaborar no campo de concentração com os SS, e, voluntário, foi de seus mais eficientes carrascos. Demjanjuk não foi o único. A documentação dos campos é reveladora de que muitos judeus, na desesperada busca da sobrevivência por mais algumas semanas ou meses, aceitavam empurrar para as fornalhas os prisioneiros agonizantes. O grande escritor francês Vercors tem o relato lancinante de alguém que assim agira, e, sobrevivente, guardou, na paralisia da mão direita, a memória de sua própria culpa. Sendo ucraniano – e não alemão – Demjanjuk está desamparado até mesmo da alegação de cumprimento do dever para com a nação alemã, como fez Eichmann em seu interrogatório em Jerusalém. Aos 89 anos, ele se reencontra com seu passado.
Estamos em tempo de reflexões sobre o direito dos seres humanos à dignidade. Ontem mesmo, ao visitar a Palestina – onde se encontra encravado o Estado de Israel – o papa Bento XVI expressou o sentimento do mundo, ao condenar o muro levantado ilegalmente pelo governo judaico, para segregar os palestinos. O papa, que tem sido muito criticado por suas atitudes, foi comedido, ao expressar solidariedade, embora se tenha referido ao grande sofrimento do povo e ao seu direito de dispor de um Estado nacional, "na terra de seus antepassados". O pontífice sabe, pela ONU, que Israel pratica torturas em centros especiais de interrogatório.
As críticas contra Bento XVI, entre elas a de que "fala como alemão", evocando-se o antissemitismo germânico, não procedem, nesse caso. A realidade na Palestina não oferece neutralidade. Há ali um Estado poderoso militar e economicamente, construído em território sob soberania alheia, com o aval e o apoio dos países mais ricos do mundo. Do outro lado, encontra-se um povo expulso de suas terras, confinado em áreas cercadas e sob bloqueio, submetido à falta de energia, de medicamentos e de comida, com água racionada e sujeito a bombardeios e massacres pelos tanques e blindados inimigos.
Para alguns, estamos em nova Idade das Trevas, no retorno à barbárie prevista por Giambattista Vico. Para exorcizar essa profecia, são necessários os atos concretos de resistência política.
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