Tantas coisas a conhecer em nós e lutamos para descobrir a vida alheia
Foram duas epidemias no ano em curso. A primeira, trágica, foi de coronavírus. A segunda, sem vítimas, foi a das lives. Não eram apenas médicos dando opiniões aguardadas sobre doenças ou cantores famosos nos ajudando a superar o confinamento. Todo mundo decidiu falar para o mundo.
O anonimato virou a dor mais aguda do mundo da internet. Disputas de likes e de fãs são fundamentais de uma forma objetiva: transformam-se em dinheiro. O argumento seria objetivo e bom: desejo ser conhecido porque preciso de recursos materiais. Ponto. “Monetizar” as intervenções na internet talvez seja o novo “concurso do Banco do Brasil”. Na minha geração, a instituição pública era um caminho indicado pelas mães de classe média para seus rebentos. Aquelas senhoras que se orgulhavam da aprovação dos filhos no disputado concurso, hoje tornadas avós, comentam que seu neto tem um milhão de seguidores.
O ponto subjetivo das lives é mais interessante. Ser conhecido é existir. O anonimato é a morte dolorosa em vida. Novidade? O grego Heróstrato tocou fogo no Templo de Diana, em Éfeso (atual Turquia), unicamente para... ser lembrado pela posteridade. Virou uma doença que atinge criminosos e terroristas, a “síndrome de Heróstrato”, mal daqueles que fazem atos violentos com o objetivo de serem conhecidos. Seríamos herdeiros dele? “Quem me cita me excita”, como li em uma página da internet. Um novo Eros, uma veleidade, uma forma de tocar a eternidade possível do mundo atual, um ou dois verões no hall da fama.
A fama é tudo, o anonimato, o vazio angustiante. Fala-se de uma dor que acometeria celebridades como membros do programa Big Brother: viram estrelas supernovas no céu e, em poucas semanas, escasseiam convites e o trend topic vira a pergunta “quem é ele”? “Ex-BBB”, ainda assim, parece ser um purgatório preferível ao vácuo do anonimato eterno.
As críticas à fama, claro, abundam em quem não a possui. O desdém da raposa pelas uvas inalcançáveis foi alvo de muitas reflexões de Esopo a La Fontaine. Racionaliza-se a frustração. Sim, nossos ataques falam de nós e de nossas dores. Em inglês usa-se a expressão “sour grapes” para o amargor profundo do cacho não degustado.
Ainda que levemos em conta o demônio de olhos verdes do ciúme e da inveja, o que é a fama? É dinheiro, já vimos. Assim como alguns juízes perdoam o “crime famélico” (a vítima rouba para comer), os gregos poderiam ter ignorado o ato incendiário de Heróstrato, pois ele buscava a mesma perenidade dos que tinham construído o templo que seria uma das sete maravilhas do mundo antigo. Como condenar no terrorista o idêntico impulso do arquiteto? A morte de Lady Di foi atribuída, pelo irmão enlutado, aos tabloides sensacionalistas que não permitiam que a infeliz princesa tivesse vida privada. Ele comentou que era irônico que a mulher que tinha o nome da deusa caçadora (Diana) fosse a mais caçada do mundo de então. O público concordou e ficou horrorizado com a fúria dos paparazzi que lutavam por fotos indiscretas que o mesmo público horrorizado consumia avidamente. Hipnose de dois lados, espelho duplo, comida e fome em um looping. O Templo de Diana foi queimado por um louco por notoriedade e Diana Spencer lutou para chegar à fama e queimou-se porque havia devotos da deusa da caça travestidos de caçadores.
Ganharemos em profundidade percebendo que o site de fofocas precisa de três ângulos para formar a figura equilátera: a entidade pública que busca (com sofreguidão) o néctar da fama; o público faminto que deseja ver para saber e para criticar e, por fim, o repórter/fotógrafo/editor que identifica a dupla necessidade e contata os polos que reclamam. O triângulo do jogo da fama é um polígono estável. Uma constante? Atribuir o mal ao vértice oposto: “Eles não me deixam em paz” complementa “esta gente só quer flashes” e “o público tem direito à informação e eu ao dinheiro”.
A fama nunca incomoda. Claro que sim. Uma vez, em um programa de televisão, Sidney Magal me confessou que não pode mais dormir em um voo. Não importa a duração de viagem, se ele cochilar, virará vídeo no YouTube. Como cantor profissional há décadas fazendo sucesso, Magal precisa de imprensa e de público. Não existe um botão on/off da celebridade. Bruna Lombardi disse, certa feita, que levara seu cachorro ao veterinário. O animal sangrava e ela estava angustiada. Algumas pessoas queriam selfies quando ela entrou no consultório. É difícil equilibrar o triângulo.
Reflito e acho que não tem solução. Cada parte gostaria de enquadrar a outra em algum cercadinho de controle. Todos (celebridade, fã, imprensa) são humanos com carências e necessidades. Circulando entre eles, uvas verdes e maduras. Por um instante, o famoso quer anonimato e paz; o anônimo anela haurir do prestígio com a fama, e o paparazzo quer ganhar dinheiro com ambos. Todos, conhecidos ou obscuros, sofremos de “síndrome de Heróstrato”. Tantas coisas a conhecer em nós e lutamos para descobrir a vida alheia. Talvez, como a personagem Kurtz de Coração das Trevas (Joseph Conrad), o horror do mundo distante distraia sua escuridão interna. Em resumo, autoconhecimento ajudaria a raposa, melhoraria a qualidade da uva e, de sobra, tornaria o texto de La Fontaine melhor. Esperança para o inverno que se aproxima.
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