O único compromisso do procurador-geral da República pode e deve ser apenas com a lei
No dia 11 de junho, o presidente Jair Bolsonaro incitou seus seguidores a invadir hospitais para verificar “se os leitos estão ocupados ou não”, pois, segundo o presidente, “tem um ganho político dos caras”, referindo-se aos governadores, a quem acusa de aumentar o número de mortos pela pandemia de covid-19 para desgastá-lo politicamente. “Tem um hospital de campanha perto de você, tem um hospital público, arranja uma maneira de entrar e filmar. Muita gente está fazendo isso, mas mais gente tem de fazer, para mostrar se os leitos estão ocupados ou não, se os gastos são compatíveis ou não”, disse o presidente da República em sua live semanal em rede social.
Como lembrou o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), “invadir hospitais é crime – estimular também”. Cabe, portanto, ao procurador-geral da República, Augusto Aras, pedir a abertura de inquérito para investigar o novo descalabro presidencial. Esse pedido não teria nenhum caráter excepcional, sendo o escorreito cumprimento das atribuições definidas pela Constituição de 1988, tendo em vista o que ocorreu no dia 11 de junho. No meio de uma gravíssima crise de saúde pública, o presidente Bolsonaro incitou os brasileiros a invadir hospitais próximos de suas casas, para filmar leitos e checar a correção dos gastos.
Em vez de seguir a trilha constitucional, pedindo abertura de investigação a respeito da fala do presidente Bolsonaro, o procurador-geral da República optou, no entanto, por um estranho caminho. No dia 15 de junho, Augusto Aras enviou ofícios ao procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, e à procuradora-geral de Justiça do Distrito Federal, Fabiana Costa Oliveira Barreto, solicitando que investigassem a invasão de um hospital de campanha e agressões a profissionais de saúde ocorridas nas últimas semanas.
Em entrevista ao Estado, o procurador-geral de Justiça de São Paulo manifestou-se surpreso com o ofício de Augusto Aras. “O Ministério Público de São Paulo não consegue avaliar a razão pela qual esse ofício chegou aqui, solicitando uma investigação que já estava em andamento, que é da nossa atribuição e que efetivamente não compete a nossa coirmã da área federal requisitar, ou solicitar, na medida em que já havíamos instaurado essas investigações assim que tivemos a notícia. Não conseguimos compreender. Estamos realmente surpresos”, disse Mário Luiz Sarrubbo.
A investigação estadual refere-se à invasão do hospital de campanha do Anhembi, realizada por cinco deputados estaduais no dia 5 de junho. Segundo o chefe do Ministério Público de São Paulo, no mesmo dia da invasão abriu-se a investigação para apurar indícios de crime contra a saúde pública. Segundo Sarrubbo, a ação dos cinco deputados estaduais foi “no mínimo atabalhoada”.
No documento enviado ao procurador-geral de Justiça de São Paulo, Augusto Aras menciona possível “responsabilidade criminal ou por ato de improbidade” dos autores da invasão do hospital. Ora, cabe aplicar o mesmo raciocínio à fala de Jair Bolsonaro do dia 11 de junho. “Arranja uma maneira de entrar e filmar”, disse o presidente. E, de forma a excluir qualquer dúvida sobre o conteúdo de sua recomendação, Bolsonaro completou: “Muita gente está fazendo isso (invadir e filmar), mas mais gente tem de fazer”.
Se Augusto Aras entende que não pode se omitir em relação à invasão de hospitais, chegando a solicitar que Ministérios Públicos Estaduais investiguem tais condutas, é evidente que, como procurador-geral da República, tem o dever de pedir que se investigue o presidente da República que, em live em rede social, instigou a população a invadir hospitais.
Augusto Aras está em posição segura, não tendo necessidade de agradar ao presidente Bolsonaro. A Constituição assegura que eventual “destituição do procurador-geral da República, por iniciativa do presidente da República, deverá ser precedida de autorização da maioria absoluta do Senado Federal”. O procurador-geral da República tem, portanto, as garantias constitucionais necessárias para cumprir de forma isenta seu dever. Seu único compromisso pode e deve ser apenas com a lei.
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