ESTADÃO - 18/09
Gosto de bons artigos tanto quanto de bons livros. Sei que não são muito frequentes, mas não acontece o mesmo com os livros? É preciso ler muitos até encontrar, de repente, aquela obra-prima que ficará gravada na memória, onde crescerá com o tempo. O artigo que Héctor Abad Faciolince publicou em El País no dia 3 – “Já Não me Sinto Vítima” –, explicando as razões pelas quais votará “sim” no plebiscito em que os colombianos decidirão se aceitam ou rechaçam o acordo de paz do governo de Juan Manuel Santos com as Farc, é uma dessas raridades que ajudam a enxergar claramente onde tudo parecia nebuloso. A impressão que me causou vai me acompanhar por muito tempo.
Abad Faciolince conta uma trágica história familiar. Seu pai foi assassinado por paramilitares (ele narra o drama num livro memorável: El Olvido que Seremos e o marido de sua irmã foi sequestrado duas vezes pelas Farc, para extorsão de dinheiro. Na segunda vez, os compreensivos sequestradores até lhe permitiram pagar o resgate em cômodas prestações mensais durante três anos. Compreensivelmente, esse senhor votará “não” no plebiscito – “não estou contra a paz”, explicou a Héctor, “mas quero que esses caras cumpram pelo menos dois anos de prisão”. Ele lamenta que o custo da paz seja a impunidade para os que cometeram crimes horrendos dos quais foram vítimas centenas de milhares de famílias colombianas.
Héctor, por outro lado, votará sim. Acredita que, por mais alto que pareça, é preciso pagar esse preço para que, após meio século, os colombianos possam enfim viver como gente civilizada, sem continuar se matando uns aos outros. Do contrário, a guerra continuará indefinidamente, ensanguentando o país, corrompendo suas autoridades, semeando a insegurança e a desesperança por toda parte. Porque para ele ficou claro que, após mais de meio século de tentativas, é um sonho acreditar que o Estado possa derrotar totalmente os insurgentes e levá-los aos tribunais e à prisão.
O governo de Álvaro Uribe fez o impossível para conseguir derrotar a guerrilha e, embora tenha reduzido os efetivos das Farc à metade (de 20 mil homens de armas em punho para 10 mil), o grupo continua ali, vivo e pulsando, assassinando, sequestrando, alimentando-se do narcotráfico e alimentando-o, e, sobretudo, frustrando o futuro do país. É preciso acabar de uma vez com isso.
Tentativa. O acordo de paz vai funcionar? O único meio de saber é pondo-o em marcha, fazendo todo o possível para que o acertado em Havana, por mais difícil que seja para as vítimas e suas famílias, abra uma era de paz e convivência entre os colombianos. Assim ocorreu na Irlanda do Norte, por exemplo, e os antigos e ferozes inimigos de ontem agora, em vez de balas e bombas, trocam ideias e descobrem que, graças a essa convivência que parecia impossível, a vida tornou-se mais viável e, graças aos acordos de paz entre católicos e protestantes, abriu-se uma era de progresso material para o país, algo que, por desgraça, o estúpido Brexit ameaça mandar para o diabo. Aconteceu o mesmo em El Salvador e na Guatemala, e desde então salvadorenhos e guatemaltecos vivem em paz.
O tempo já não está para as aventuras guerrilheiras que, nos anos 1960, serviram apenas para encher a América Latina de ditaduras militares sanguinárias e corrompidas até a medula. O empenho em imitar o modelo cubano, a romântica revolução dos barbudos, fez com que milhares de jovens latino-americanos se sacrificassem inutilmente e a violência – e a pobreza, sem dúvida – se ampliasse e causasse mais estragos que aquela que os países arrastavam havia séculos.
Fomos aprendendo pouco a pouco a lição e a isso se deve que hoje exista, de um canto a outro da América Latina, um amplo consenso em favor da democracia, da coexistência pacífica e da legalidade, ou seja, um repúdio quase unânime às ditaduras, rebeliões armadas e utopias revolucionárias que afundam os países na corrupção, na opressão e na ruína – leia-se Venezuela.
A exceção é a Colômbia, onde as Farc mostraram – creio que, principalmente, devido ao narcotráfico, fonte inesgotável de recursos para provê-las de armas – uma notável capacidade de sobrevivência. Trata-se de um anacronismo flagrante, pois o modelo revolucionário, o paraíso marxista-leninista, é uma miragem na qual só acreditam grupúsculos de ideológicos obtusos, cegos e surdos ante o fracasso do coletivismo despótico, como atestam os dois últimos tenazes sobreviventes, Cuba e Coreia do Norte.
O surpreendente é que, apesar da violência política, a Colômbia continue sendo um país com uma das economias mais prósperas da América Latina e no qual a guerra civil não conseguiu desmantelar o Estado de Direito e a legalidade, pois as instituições civis, bem ou mal, continuam funcionando. E é certo que um incentivo importante para que os acordos de paz funcionem é o desenvolvimento econômico que, sem dúvida, trarão consigo, seguramente no curto prazo.
Esperança. Héctor Abad diz que essa perspectiva estimulante justifica que se pare de olhar para trás e se renuncie a uma justiça retrospectiva, pois, caso contrário, a insegurança e a sangria continuarão sem cessar. Basta que se saiba a verdade e os criminosos reconheçam seus crimes, de modo que o horror do passado não volte a se repetir e fique por lá, como um pesadelo que o tempo vá dissolvendo até fazer desaparecer.
Não há dúvida de que existem riscos, mas qual seria a alternativa? Ao cunhado, Héctor faz a pergunta: “Não é melhor um país em que seus sequestradores estejam livres fazendo política em vez de estarem perto de sua chácara, ameaçando seus filhos, meus sobrinhos, e os filhos de seus filhos, seus netos?”. A resposta é sim.
Para mim não estava tão claro antes de ler o artigo de Héctor Abad Faciolince, e muitas vezes me disse nas últimas semanas: que sorte não ter de votar nesse plebiscito, pois, na verdade, me sentia oscilando entre o sim e o não. Mas as razões desse magnífico escritor, que também é um cidadão sensato e completo, me convenceram. Se eu fosse colombiano e pudesse votar, também votaria sim./ TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
* MARIO VARGAS LLOSA É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA
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